A cultura humana é um organismo tão vivo quanto as cem bilhões de bactérias que fazem parte da sua flora intestinal, meu caro leitor. Como tal, ela evoluiu ao mesmo passo em que nós mesmos o fizemos: surgiu junto aos hábitos de caça e pesca, definiu a si própria em meio às constantes migrações de nossos antepassados, delineou a si própria nos desenhos rupestres e então acompanhou a passagem do tempo quando este passou a ser medido entre uma colheita e outra. Nossa cultura nos ensinou a falar, e então a criar nossos filhos, e então a nos despedirmos de nossos mortos. É apropriado dizer que, para cada invenção apresentada com o intuito de facilitar o trabalho ou tornar prática uma ação que anteriormente demandava tempo demais, uma "invenção cultural" surge do éter para contrabalanceá-la. Videogames são, para mim, o melhor exemplo disso.
O primeiro videogame surgiu quase ao mesmo tempo que o primeiro computador. É seguro dizer que a presença de uma funcionalidade tão banal em máquinas colossais do século passado, coisas tão custosas e sérias quanto o tear mecânico durante a Revolução Industrial, poderia não passar de algo para tornar o produto mais vendável — mas existe um certo nível de ignorância naquele que pensa que os responsáveis por uma invenção tão magnífica não sentiriam a necessidade de se divertir com ela. Não demorou muito para que videogames se tornassem parte da nossa cultura; na verdade, dadas as devidas proporções, o punhado de décadas que demorou até que o passatempo virtual virasse mainstream foi um período incrivelmente curto. Estranhamente, porém, videogames acabaram se enveredando não por um caminho de progressão óbvio a partir de seu início em Tennis for Two, mas sim por uma via simbiótica e apropriadora na qual também corria o fluxo da música, das artes plásticas, da atuação e da literatura.
Não estou tentando inferir minhas opiniões e considerações a respeito do eterno debate que gira em torno da pergunta "Videogames são arte?", e sim citando o fato de que obras interativas, atualmente, atraem patronos não só pelo refinamento de suas mecânicas ou pelo senso apurado de suas filosofias de design, mas sim por causa de mascotes coloridos, trilhas sonoras capazes de mover os mais empedernidos dos íntimos e cinematografia capaz de rivalizar com a dos melhores que Hollywood tem a oferecer. Entenda: minha fascinação pelo mundo dos jogos, que em muito antecede meu próprio envolvimento nele, surgiu devido a uma paixão ainda mais antiga por animações. Por mais que Literatura seja minha esposa eterna, o trabalho exercido por grandes animadores nas mais variadas mídias sempre vai me atrair como uma saia curta demais num dia particularmente ventoso.
Cresci à base de TV Cultura, conhecendo a partir dela os mais estranhos e maravilhosos desenhos animados europeus, e também assisti muita TV Globinho, que me iniciou em alguns dos mais badalados títulos da animação americana; me eduquei na matéria do seminal Bruce Timm no Bom Dia & Cia, que também trazia clássicos da Warner Bros. que um garoto da minha idade não deveria achar tão interessantes, mas acabava achando mesmo assim. Quando meu pai finalmente decidiu instalar TV a cabo, eu quase não cabia em mim de tantas opções no Cartoon Network — e quando eu descobri a internet, animes elevaram meu padrão para além do que seria saudável na tenra idade dos doze anos. Algo a respeito daquelas imagens, que essencialmente eram apresentações de slide muito rápidas sobrepostas com áudio, mexia comigo: imaginar pessoas fazendo aquele trabalhão todo só pra eu ver, o modo como histórias em desenho animado costumavam ser muito mais criativas e coloridas que suas contrapartidas em live-action e, acredito eu ser o fator principal, a fluidez dos movimentos.
Eu mesmo não saberia explicar o que quero dizer com isso. Seria preciso que eu mesmo estudasse a arte, que fosse capaz de captar em que momento do processo de animação os personagens deixam de ser meras imitações da realidade e passam a representar uma realidade diferente, idealizada, perfeita para o escapismo fútil mas necessário para todas as crianças. Fato é que eu sempre fui capaz de ignorar uma história ruim se ela fosse bem animada; o que sempre me interessou ao assistir algo feito à mão ou digitalmente era o visual, a fluidez, e por isso demorei anos para descobrir que Final Fantasy: Spirits Within era considerado um filme terrível apesar de figurar entre minhas obras favoritas da pré-adolescência. Mau gosto? Talvez. Mas o ponto aqui são os videogames.
Tendo sido uma criança muito atrasada, como pode imaginar, meu primeiro contato com videogames só se deu muito, muito tempo depois do que a maioria das crianças ganha de presente um console. É óbvio que eu tinha jogado um futebolzinho de controle na casa de um primo e estava ciente de que videogames existiam como uma força na indústria de entretenimento, mas foi só aos dezesseis anos, assistindo MTV, que eu me interessei pela experiência em primeira mão. Num segmento de um daqueles programas "de gamers" que toda emissora tinha no início da década passada, passou um trailer para Dark Souls II. Seis anos se passaram desde então, e eu ainda me lembro nitidamente desse vídeo devido ao impacto que ele exerceu sobre mim:
Mesmo que você não veja nada demais no vídeo, imagino ter deixado claro o quanto animação, especialmente feita em computação gráfica, era capaz de me afetar. Eu não sabia, na época, que jogos estavam alcançando esse nível de compromisso com a cinematografia de sua apresentação; e, descobri depois, que trailers em CGI não tinham qualquer obrigação de refletir o produto que promoviam. Ainda assim, me vi fascinado pelos trailers em si. Lembro de passar horas no YouTube assistindo compilados de trailers "cinemáticos" de Assassin's Creed e, através dele, descobrindo todo um mundo de storytelling que não era nem sóbrio como os filmes vencedores do Oscar nem limitado como mangás ou quadrinhos — um híbrido de ambos que usava as técnicas de narração visual para trazer à vida conceitos que desafiavam a imaginação de qualquer leitor ávido de fantasia.
Quando finalmente comecei jogar videogames, a noção de que eles me levariam a lugares que um bom livro não poderia desapareceu: bons jogos, como John Carmack disse muito sabiamente, não se concentram tanto numa narrativa coerente com incríveis setpieces e grandes momentos emotivos. Uma outra paixão surgiu no lugar da antiga, uma paixão concreta, e eu me vi gostando de jogos devido à sensação advinda de controlar um personagem dentro do mundo virtual dele. Meu gosto por jogos passou a se definir não pela beleza de suas cutscenes, mas sim pelo nível de liberdade que ele é capaz de prover a quem joga e o quão bem ele reage às possibilidades oferecidas por essa interatividade. RPGs, immersive sims, sandboxes de mundo aberto... A única característica que esses gêneros têm em comum é que quem os joga passa horas e horas sem assistir uma cutscene sequer.
O melhor exemplo da mudança de opinião pela qual passei com videogames é minha experiência com a saga Devil May Cry. Atraído pelos visuais dos personagens, pela popularidade deles e pelo frisson que se seguiu depois do lançamento do quinto (sexto) jogo da franquia, eu decidi comprar e jogar todos eles. Eu fui jogar pela história, imaginando se tratar de uma série pesada em narrativa e com cutscenes longas no estilo da trilogia original de God of War, e não pude deixar de me frustrar quando descobri que o grosso da caracterização de Dante, Nero e Vergil acontecia no combate, através do quão bem o jogador é capaz de performar combos e manter intacto o seu ranking de estilo. Eu acabei considerando DMC 3 e 5 como dois dos melhores jogos que já joguei na vida, mas por motivos completamente diferentes que envolvem, atualmente, pular todas as cutscenes enquanto jogo.
Entendo que adaptações de videogames para outras mídias têm zero apelo comercial hoje em dia, principalmente as que não têm qualquer pretensão de adaptar o material-fonte com fidelidade, mas existe em mim o desejo de ver a história de um jogo sem que ela esteja fatiada entre seções de gameplay que não contribuem em nada para a atmosfera narrativa, para o desenvolvimento de personagem ou para a expansão mais detalhada dos temas abordados no contexto da história. Algo com o mesmo visual deliciosamente maluco que só a computação gráfica consegue fazer justiça, algo com o valor de produção elevado que separa cutscenes de jogos dos demais projetos de animação que existem hoje em dia e o mesmo senso explosivo de ação que uma setpiece digna de Uncharted.
Isso é pedir demais? Sim? Ah, deixa pra lá.
Acredito se tratar de uma questão de linguagem. Por mais que jogos modernos recebam críticas por serem filmes em que você ganha controle durante as cenas de ação, a mera necessidade de interatividade é o que motiva muitas escolhas narrativas do que diz respeito ao ritmo e à estrutura com que os acontecimentos se desenrolam. Muito do que vemos em The Last of Us, por exemplo — toda aquela andança e falatório sobre coisas cotidianas —, seria cortado num filme de verdade para uniformizar melhor a sequência das cenas e sua progressão na história. Gosto de pensar que ser roteirista num videogame deve ser o trabalho mais ingrato do mundo, porque a menos que o jogo não dê nenhuma capacidade real de interação para o jogador a história vai servir de segundo plano para os tiroteios, a exploração e as tentativas do jogador de fazer o que não se deve.
Não me compartimentalize, leitor, como um daqueles esquisitos que acha que histórias não têm lugar em videogames, saiba que esse não é o caso. Como disse, RPG é um de meus gêneros favoritos e a maioria deles, a exemplo da série Persona ou de clássicos como Planescape: Torment ou Fallout: New Vegas, não tem muito além de história. E são boas histórias, histórias que se utilizam bem da mídia interativa em que são contadas para engajar e deixar uma marca em quem as joga. Esse texto não é um grito para o vazio virtual implorando para que histórias sejam abolidas de videogames nem uma carta aberta para que as grandes desenvolvedoras removam o máximo possível de gameplay para que pessoas como eu possam aproveitar a história de seus títulos futuros.
Assim como este texto, o videogame moderno é uma entidade divida e incompleta devido ao fato de se espalhar demais em muitas direções. Se a gameplay for boa demais, a história é esmagada pelo peso com que o jogador "aperta X para pular"; se a história for prioridade, a gameplay acaba se tornando uma inconveniência que distrai e é jogada com o mínimo de envolvimento possível. No fim, a percepção de quem joga é a única coisa capaz de salvar um ou outro tipo de jogo — percepção e preferência. Uma questão de cultura, talvez?
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