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Domingo da Creepypasta #4

Não se desespere com o pensamento de que amanhã já é segunda, leitor. Podia estar nevando.

 Essa história é, de longe, minha creepypasta favorita. Nunca encontrei outra igual a ela, e não raro releio as três partes deste épico que já deveria ter virado filme só pra matar a saudade. Ela foi postada no 4Chan em 2014 e, até onde eu saiba, não foi traduzida. Felizmente, essa história tem um título, então só precisei me ocupar com a tradução do texto em si. Dado o alto status dessa história em meu coração, caprichei um pouquinho mais nela. Espero que gostem!

O Homem Branco (Parte 1)

“Domingo agora meu pai morreu; ele estava para fazer 55 anos no próximo mês de Abril.

Ele e eu nunca fomos próximos, mas também nunca nos desgostamos. Simplesmente não tínhamos nada em comum e, talvez acreditando que haveria tempo para consertar nosso relacionamento no futuro, nunca liguei pra isso. Ele não estava doente, então nunca me esforcei pra visitá-lo – e, na verdade, não o fiz nos últimos três anos.

É possível que eu esteja me sentindo culpado por nunca ter demonstrado interesse pelo meu pai. Talvez eu só sinta falta dele e queira falar a seu respeito.

Mas hoje eu quero te contar uma história sobre o meu pai, e talvez compartilhar informações sobre a coisa que ele chamava de ‘o Homem Branco’.

Já adianto que minha família não é nativo-americana, e esse tal de Homem Branco não roubou nossa terra.

Meu pai era o típico ‘pai suburbano’ e, francamente, do tipo mais entediante. Ele tinha típicos ‘interesses de pai’, como pescar, caçar e jogar boliche. Ele usava sandálias e suéteres de gola alta, dirigia um utilitário com placa personalizada. Apesar da aparência de classe média alta, porém, ele era um caipira.

Um baita caipira.

Entenda, meu pai cresceu na região montanhosa do Michigan nos anos 60 e a família dele era pobre e bastante religiosa. Nunca conheci os parentes que tinha por parte dele (tirando o meu tio, Philly, que é um personagem importante nessa história), mas pelo que ouvi falar eles eram do tipo Deliverance on Ice*.

Viviam na floresta, e a casa era pouco maior que um chalé. Grande parte do dinheiro vinha da criação de porcos e galinhas; o resto da madeira cortada e vendida pelos homens da família. Meu avô batia nos filhos quando ficava bêbado, o que deixou meu pai com algumas cicatrizes terríveis (a maior parte delas física, mas algumas mentais também eram evidentes).

É importante notar que meu pai não era esperto. Ele não era criativo. Não era um contador de histórias. Ele se lembrava de coisas e as repetia, assim como era capaz de focar sua energia em projetos que lhe interessavam, mas ele não era esperto. Inteligência não tinha nada a ver com o sucesso dele na vida. Tenha isso em mente quando eu lhe falar das histórias dele.

Meu pai costumava falar abertamente sobre o Homem Branco com minha irmã e eu (mais com ela do que comigo, já que eles eram muito mais próximos), mas sempre tomava cuidado para não mencioná-lo na presença de minha mãe ou de Philly. Meu tio costumava tirar sarro do ‘bicho-papão’ dele, e minha mãe nunca soube dessas histórias. Acho que meu pai tinha medo que ela o achasse maluco por causa delas.

Cresci ouvido falar do Homem Branco, que parecia ser uma combinação de todos as lendas urbanas típicas. Ele era capaz de mudar de forma, mas não de cor; em sua aparência natural ele era vagamente humanoide, mas sem rosto, e era capaz de se transformar em pessoas e animais. Ele era antigo, não era estúpido, mas era mais animal que homem. Ele escolhia pessoas, seguia-as e trazia má sorte a elas. Mais que tudo, o Homem Branco gostava de fazer acordos.

O Homem Branco não era do tipo Ceifador Sinistro, mas sim um predador que aparecia quando uma pessoa estava prestes a morrer ou gravemente ferida. Foi assim que meu pai o conheceu. Me perdoe o que vem a seguir não for contado tão bem. Admito que tenho pouco talento para contar histórias, e a lembrança que tenho delas é tão velha que alguns detalhes podem estar faltando.

Meu pai e Philly tinha respectivamente 10 e 9 anos quando, em meados de Janeiro, saíram para caçar na floresta. Mesmo mais jovem, era Philly quem liderava. Eles se afastaram da rota usual de caça e, quando escureceu, se descobriram perdidos. O que começou como uma caça diurna comum se transformou numa situação potencialmente fatal, já que eles não estavam suficientemente agasalhados ou tinham o equipamento necessário para sobreviver à noite.

No escuro, nenhum dos meninos foi capaz de ver que tinham ido parar na superfície congelada de um lago. As coisas pioraram, então, quando o gelo cedeu sob o peso do meu tio. Meu pai, sendo meio lendo das ideias, demorou tempo demais para reagir adequadamente à situação.

O resgate em si foi feito rapidamente – ainda que de forma atrapalhada, resultando em meu pai também ficar coberto de água –, mas depois dele a situação ficou ainda pior. Sem ideia de onde estavam, já que não haviam lagos perto da casa deles, ambos se viram exaustos e encharcados em meio à escuridão.

Eventualmente os irmãos conseguiram sair do lago e trilhar a floresta à procura de um caminho que os levasse de volta para casa. Encontrando uma fissura numa árvore tombada, ambos se enfiaram dentro dela para se abrigarem do frio. Quando ficou claro que a abertura só tinha espaço para um, meu pai voluntariou-se para ficar do lado de fora enquanto seu irmão tentava se esquentar dentro da fissura.

É aqui que a história se divide em duas versões. A mais acreditável é a de Philly:

>ele apaga
>meu pai acorda ele um tempo depois
>diz que precisam continuar
>eles continuam até ver luzes
>luzes de lanternas
>“vizinhos” estavam procurando por eles
>eles são levados pelos vizinhos de volta pra casa
>o pai deles bate nos dois
>todos os caipirias ficam felizes menos meu pai, porque ele ficou doido

E então tem a versão do meu pai.

Ele me contou que, sentado no frio, ficou alerta a qualquer sinal de vida. Animais poderiam significar um abrigo melhor (e também perigo se fosse um predador grande), e se uma pessoa ou veículo passasse por perto eles poderiam ser salvos.

Depois de vinte minutos de silêncio ele ouviu algo: passos. Segundo ele, parecia que um homem muito grande estava andando não muito longe dali. O que lhe surpreendeu, porém, foi não ser capaz de ver ninguém nas redondezas; a lua já estava no céu, clareando bastante as redondezas, e na época já era comum que pessoas caminhando pela floresta usassem pelo menos uma peça de roupa colorida para evitar que um caçador as tomasse por animais.

Mesmo assim, o barulho ficou muito mais alto antes que meu pai finalmente visse o que era responsável por ele. A figura era branca como a neve e claramente não-humana – meu pai a descreveu como tendo quase três metros de altura e ‘parecida com Gumby**’. Tinha dois braços, duas pernas e dois olhos, mas seu rosto não tinha feições. Todo o corpo da criatura era arredondado e liso.

Com medo de se mexer, meu pai se esforçou para ficar imóvel. A coisa, entretanto, demonstrou já tê-lo visto. Ela se aproximou dele e começou a ‘falar’. Quando falava, não o fazia com a boca. Meu pai simplesmente ouviu as palavras e respondia ‘da mesma forma’. Deixo você decidir o que isso significa.

A exatidão da conversa e a duração dela eu não sei, mas a coisa disse ao meu pai que era antiga e que vivia no frio e que precisava deles. Ela vinha quando pessoas ficavam com muito frio ou perdidas ou feridas por animais e as levava. Ela não tinha interesse nos já mortos, só nos que estavam morrendo. Conversar com a coisa era perturbador, meu pai disse, mas não desagradável.

A coisa disse ao meu pai que ele tinha que se levantar e levar o irmão nos braços; ela ordenou que ambos os irmãos a seguissem para longe. Meu pai, é claro, recusou-se. ‘Por quê?’, a coisa perguntou. ‘Vocês vão congelar de qualquer jeito. Não importa.’ Meu pai recusou-se de novo e, vencida, a coisa perguntou por que ele era tão teimoso. Soava surpresa, como se normalmente as pessoas não fossem tão cismadas.

‘Eu não quero morrer. Não quero que meu irmão morra’, foi o que meu pai respondeu.

‘Então vamos fazer um acordo’.

Meu pai disse que a coisa – que nunca, em nenhum dos muitos encontros entre ambos, disse como se chamava – falava como um vendedor de carros ou apresentador de TV. Tentou convencer meu pai que ele não sabia o que era melhor para ele. Não seria mais fácil só acompanhar o Homem Branco? Não seria mais simples do que morrer de frio?

Meu pai, ainda assim, recusou. O acordo foi feito; os meninos seriam devolvidos a seus lares, mas suas vidas estariam em empréstimo. A coisa cobraria juros, e um dia viria buscá-los.

O monstro, então, começou a andar. Mesmo que não tivesse dito nada nesse sentido, meu pai entendeu que ela o levaria à segurança. Ele acordou Philly e os dois seguiram em frente. É estranho que uma criança estivesse disposta a seguir um monstro de neve gigante que tentou sequestrá-las, mas ou meu pai não estava pensando direito na hora ou não sabia contar histórias décadas depois.

Antes que Philly acordasse, porém, o Homem Branco desapareceu assim como suas pegadas na neve. Primeiro meu pai pensou que a coisa tinha voltado atrás em seu acordo (ou simplesmente abandonado os irmãos), mas daí percebeu que havia uma trilha de pegadas minúsculas no lugar das do monstro e decidiu segui-las. Ocasionalmente, durante a caminhada, meu pai tinha vislumbres de um coelho completamente branco seguindo à frente. Foi assim que ele descobriu que a coisa era capaz de mudar de forma. Depois de algum tempo, luzes surgiram à distância e ambos os irmãos andaram na direção delas.

Claro que, quando eu era criança, a história me assustava bastante. Tenho certeza que esqueci de um ou outro detalhe importante. Mesmo na época, porém, eu era capaz de perceber os furos nela e o quão inventada ela parecia ser. Minha mãe costumava contar histórias de como a casa em que morou quando criança era ‘assombrada’, e mesmo ela insistia que fantasmas não existiam; achei que as histórias do meu pai eram desse tipo.

Antes de continuarmos, preciso dizer algumas coisas. Primeiro, eu não acredito realmente nas histórias do meu pai, mas sei que ele acreditava nelas por algum motivo. Só achei que vocês iriam gostar delas e talvez saibam de alguma lenda parecida que minhas pesquisas no Google não encontraram.

Também quero dizer que meu tio, de novo, acha essa história uma baboseira só. Quando ele contava sua versão da história, só falava de como eles tinham se perdido, quase morrido e levado uma surra depois de voltar pra casa. Ele repetia alguns detalhes da versão do meu pai: pegadas de coelho, pegadas maiores que as de um coelho (embora essas, ele dizia, pareciam mais depressões na neve do que pegadas de verdade) e que meu pai havia realmente seguido um animal pequeno por algum tempo (a cor dele meu tio não saberia especificar), decisão que ele considerara estúpida da parte do irmão.

Meu tio só ouviu falar do Homem Branco um ano depois do acontecido. A desculpa do meu pai para não ter compartilhado essa versão da história era ‘ele ou ia achar que eu era doido ou que ia morrer’, e foi só por causa do choque do incidente seguinte que meu pai mudou de ideia.

Um ano se passou, e meu pai começou a achar que tinha alucinado toda a história com o Homem Branco. Uma noite, porém – de novo no inverno, de novo com neve cobrindo o chão –, ele saiu para cuidar dos porcos na companhia de seu cachorro de estimação.

Os únicos amigos próximos de meu pai durante a infância eram Philly e esse cachorro, que era metade basset hound e metade beagle e se chamava Shorty. Tantas foram as vezes em que meu pai repetiu isso que, depois de crescer, me perguntei que tipo de relação ele teve com as irmãs. Acho que não eram muito próximos; nunca conheci minhas tias.

Meu pai e Shorty estavam no celeiro, que ficava longe o suficiente da casa para evitar que o fedor dos porcos chegasse nela durante os meses mais quentes. Era um celeiro com portas de ambos os lados, e durante o verão era comum que a dos fundos ficasse aberta para que os porcos esticassem as pernas no cercado.

Como era inverno, não é difícil imaginar a surpresa do meu pai ao chegar no celeiro e encontrar a porta dos fundos completamente aberta. Não era a primeira vez que isso acontecia, de modo que meu pai sabia que precisava chamar meu avô e meu tio para trazer de volta os porcos que tivessem escapado. Naquela noite, entretanto, isso não seria necessário. Todos os porcos estavam amontoados do lado de cá do celeiro, tão longe da porta aberta quanto possível.

Assumindo que os porcos estavam sendo sensatos e evitando o frio do lado de fora, meu pai avançou até os fundos para fechar a passagem com Shorty em seus calcanhares. Assim que chegou à porta, por sua vez, o cachorro farejou alguma coisa e disparou para o lado de fora. Era óbvio que Shorty estava perseguindo algo: corria latindo e uivando à toda velocidade.

Shorty, segundo meu pai, era um dedo-duro. Se alguém fazia algo que não devia, ele denunciava; se uma das crianças estivesse fora da cama no horário de dormir, precisava evitar que o cachorro visse. O mesmo era aplicável aos animais, e se uma galinha ou porco estivesse onde não deveria, o cachorro iria atrás. Foi com isso em mente que meu pai não foi capaz de pensar que algo estivesse errado. Para ele, Shorty devia estar perseguindo um porco fugitivo. Rapidamente (não tão rápido; porcos são todos iguais, se movimentavam bem rápido e meu pai não era muito esperto), ele contou os porcos e percebeu que um macho adulto estava desaparecido.

Meu pai seguiu Shorty. Na neve imperturbada, era fácil seguir os rastros do cachorro; mas também ficou mais evidente que havia um problema.

As pegadas de Shorty na neve não estavam seguindo as de um porco. Na verdade, não havia pegadas de porco apesar do vento fraco ser incapaz de cobrir qualquer marca deixada na neve. As pegadas que o cachorro estava seguindo não eram propriamente pegadas, e sim depressões enormes e sem forma exata.

Essas meu pai reconheceu. Mesmo brevemente, ele as tinha visto na floresta no ano passado. Ali estavam elas novamente, com um ávido Shorty perseguindo-as. Juntando coragem, meu pai seguiu em frente; ele queria seu cachorro de volta e, assustado ou não, seu pai o mataria se soubesse que um porco havia se perdido.

O cercado dos fundos tinha um tamanho decente, mas não demorou até que meu pai chegasse à cerca de um metro e meio de altura. Sorty era capaz de escalá-la (devia ser mais beagle que basset, porque a ideia de um basset escalando uma cerca é hilária) e meu pai viu que o cachorro já tinha sumido para os lados da floresta. É claro que o cercado não tinha impedido o Homem Branco. As pegadas dele simplesmente passavam pela barreira como se ele não tivesse precisado desacelerar para vencer o obstáculo.

Meu pai escalou a cerca e dentro em pouco estava na mata fechada – porque naquela região não havia outro tipo de mata que não a fechada, e todo espaço onde se queria construir alguma coisa precisava ser aberto à base do desmatamento. Não demorou muito tempo para que ele voltasse a ouvir os latidos de Shorty e o guinchar de um porco aterrorizado.

Correndo, meu pai chegou à cena rapidamente. De pé em meio às árvores estava o Homem Branco, que parecia ainda maior que no ano passado. Num dos braços, sem esforço aparente, ele levava o porco, que devia pesar quase duzentos quilos. A alguns metros de distância estava Shorty, todo arrepiado e com os dentes para fora, rosnando como se tivesse encurralado o monstro.

Não houve comunicação ou confrontação entre o Homem Branco e meu pai. Houve apenas uma impressão. A impressão de que o Homem Branco havia esperado pelo meu pai, que ele tinha ficado ali ignorando o cachorro só para que meu pai pudesse vê-lo.

Houve uma pausa curta, então meu pai percebeu uma coisa terrível; o Homem Branco, tinha, de fato, uma boca. Debaixo dos olhos negros da coisa havia uma fenda, uma linha longa, e ela se abriu só um pouquinho para revelar dentes afiados tão brancos quanto o resto. Eles brilharam sob o luar.

Tão rápido quanto ele abriu seu sorriso, o Homem Branco se foi. Silencioso, ele disparou correndo entre as árvores e graciosamente evitou os obstáculos em seu caminho. O único som que ele produzia ao se mover era o suave esmagar do gelo sob seus pés. Shorty ameaçou perseguir a coisa, mas meu pai conseguiu se atentar a isso e chamou pelo cachorro antes que este disparasse pela floresta. Meu pai chorou durante todo o caminho de volta para casa.

Claro, ele ficou numa enrascada. Decidindo não contar aos pais o que houve, ele foi punido por ter deixado o porco escapar. A única pessoa para quem ele contou foi Philly, e isso só porque meu pai não parou de chorar durante os dias seguintes. Meu tio não acreditou muito na história, mas também não disse nada para contradizê-la.

Philly eventualmente passou a acreditar que meu pai era esquizofrênico, e que o Homem Branco era uma manifestação disso. Eu não sei nada sobre doenças mentais, por isso não sei o quanto esse diagnóstico caseiro está certo.

Anos se passaram antes que meu pai visse o Homem Branco novamente, mesmo que ele diz sentir que ‘ele estava por perto’ durante esse período de aparente paz. Todo inverno, sem falta, um porco ou grupo de galinhas desaparecia. Só houve um ano em que isso não aconteceu: um menino desapareceu na floresta e naquele respectivo inverno nenhum porco sumiu.

Foi o sumiço dos animais (e os dentes fiados) que fez meu pai chegar à conclusão que o Homem branco precisava comer, e que ele não era vegetariano. O Homem Branco, entretanto, nunca chegou a dizer que matava e comia suas vítimas. Considerando o que ele levava anualmente, porém, meu pai não achou difícil adivinhar o real objetivo da coisa.

Aos dezesseis anos, meu pai viu o Homem Branco de novo. Lembro da idade com exatidão porque meu pai mencionou ter sido o ano em que ele começou a dirigir.

Era tarde da noite e meu pai estava voltando de carro pra casa. Fazia pouco tempo que ele começara a trabalhar num posto de gasolina próximo, e era comum não voltar até tarde da noite. Vale notar que meu pai tinha habilidades e talentos (como trabalhar duro e saber cozinhar bem), mas dirigir, especialmente durante o inverno, não era um deles.

Dirigir assustava meu pai. Ele ficava aterrorizado com a ideia de as rodas derraparem e ele bater numa árvore, por isso dirigia com cuidado e muito devagar. Ele era de gritar com os filhos, mas ficava muito estressado quando falávamos demais durante uma viagem de carro ou quando o rádio tocava alguma música barulhenta; os ruídos distraíam, deixavam ele nervoso. Com isso em mente, o que estou pra lhe dizer não será surpreendente.

Ele bateu.

Sim, aconteceu quando ele freou muito bruscamente ao parar para ajudar uma pessoa ferida num outro acidente, mas ainda assim ele bateu.

Outro carro tinha derrapado no acostamento da estrada remota que levava à casa dele, e no processo de oferecer ajuda meu pai também teve um acidente – um muito mais violento que o do outro carro. Ele acabou acertando uma árvore com tanta força que acabou causando danos sérios ao carro que dirigia e ainda por cima feriu a perna. O motorista do outro carro acabou vindo ajudar, e depois de perceber que meu pai não podia voltar a pé pra casa, foi andando até a cidade pra conseguir ajuda para ambos.

Meu pai agradeceu, e o homem seguiu a pé pela estrada. Apesar da distância e do frio, meu pai calculou que levaria mais ou menos uma hora para o homem chegar ao posto de gasolina e então uma quantidade similar de tempo até que, de lá, chegasse de carona até a cidade em si. A ajudara chegaria de carro, então em menos de três horas meu pai achou que estaria na cabine aquecida de um caminhão-guincho no caminho para casa (ou, o que era mais provável, para o consultório de um médico).

Era meia-noite quando o homem partiu, e meu pai tinha um relógio de pulso para o qual olhar enquanto tremia de frio no escuro. Uma da manhã chegou e passou. Duas da manhã depois. Três. Quatro. Olhando para o relógio, ele se sentiu cair no sono. O som de passos pesados se aproximando, passos de um homem grande, foi o que lhe despertou.

Por algum motivo ele pensou que o sujeito que fora pedir ajuda não conseguiu chegar ao posto e precisou voltar pra ajudar meu pai a sair dali. Ou talvez o cara tenha ido embora, e o homem que se aproximava era alguém diferente oferecendo ajuda.

Ele levantou o pescoço para olhar pro retrovisor do carro, e então sentiu o estômago despencar. Não tinha homem nenhum na estrada coberta de neve. Se era possível ouvir os passos, devia ser possível ver, mas não foi um homem que meu pai viu.

Segundo ele, a sensação foi como a de estar num pesadelo. Ele começou a olhar por cima do ombro, desesperado para enxergar alguém, qualquer pessoa, na esperança de só estar assustado depois do sono. Foi então que meu pai viu uma forma branca enorme se aproximando em meio às árvores marrons e pretas na beira da estrada. Era o Homem Branco de novo, passos lentos aproximando-o do carro do meu pai.

Seus movimentos eram graciosos, mas ele parecia um pouco preocupado. Meu pai nunca tinha visto ele ‘em campo aberto’ antes, mas ali estava ele, se movendo com a cautela ‘de um gato com medo de ser visto à noite’. Eventualmente, a coisa chegou pertinho do carro e parou. De novo, meu pai não sentiu raiva ou terror; mesmo assustado, ele falou com a coisa calmamente. Dessa vez a conversa foi rápida, uma única frase não-dita dentro da cabeça do meu pai:

‘Não se preocupe; já foi pago.’

Com isso, o gigante continuou seu caminho através da estrada até as árvores do outro lado. Como que para nos dar uma lição, meu pai sempre contava essa história dizendo que o Homem Branco olhou para os dois lados antes de atravessar a rua.

Uma vez que a coisa saiu de vista, meu pai começou a chorar. O choro continuou até que um carteiro (mesmo no fim do mundo você tem que receber as contas) o encontrou quatro horas depois. Meu pai se recuperou da ferida na perna, mas precisou pagar uma ‘pequena fortuna’ para consertar o carro.

O outro motorista acidentado? Teve menos sorte. Nunca mais apareceu. Uma investigação foi aberta, mas nenhuma pista de seu paradeiro foi encontrada.

Essa é a última história de que me lembro bem. Algumas outras estão embaralhadas na minha memória; já faz dez anos desde que as ouvi pela última vez.

De alguma forma meu pai sabia que o Homem Branco estava ligado ao inverno. Isso não surpreende ninguém, já que estamos falando de um monstro da cor da neve que vive na região mais fria dos EUA e só aparecia depois de uma nevasca. O problema, veja bem, é que no Michigan era inverno quase o tempo todo.

Os anos seguintes se passaram sem nenhum evento digno de nota. O Homem Branco continuou a pegar seu pagamento todo inverno, mas nunca chegou perto de Shorty ou da minha avó nem nada do tipo. Meu pai tinha dezenove anos quando decidiu ir embora. A família dele era pobre e, mesmo se não fosse, meu avô nunca permitiria que um filho dele fosse para a faculdade.

Quando meu pai e meu tio se tornaram ‘homens’, meu avô deu a eles uma escolha: se tornar fazendeiros, padres, lenhadores, construtores ou ir embora e nunca mais voltarem. Foi por causa de Philly que eles acabaram não ficando, apesar de eu ter certeza que meu pai já estava querendo partir para longe do frio.

Philly decidiu se alistar no Exército e meu pai o acompanhou. A guerra no Vietnã tinha acabado recentemente, e meu pai brincava dizendo que queria ter participado dela para poder visitar um lugar onde nunca nevava. Eu poderia mentir e adicionar um pouco de comédia na história dizendo que eles foram mandados para o Alasca ou para a Rússia, mas a verdade é um pouco mais entediante.

Eles foram aceitos no Exército e receberam treinamento básico, mas nunca viram ação. Philly foi dispensado por ter um defeito de nascença e meu pai ficou trabalhando em várias bases militares até o fim de seu contrato. Ele pedia pra ser transferido para algum lugar quente e, como era benquisto por seus superiores, acabou no Texas.

Meu pai tinha toneladas de histórias sobre coisas estranhas encontradas na floresta antes de ele sair de sua cidade-natal e outros incidentes vagamente conectados ao Homem Branco, mas passou bastante tempo até que eles se encontrassem novamente; afinal de contas, se a coisa estava conectada ao frio, passaria longe do Texas.

Perto do fim do contrato militar do meu pai, porém, uma tempestade de neve atingiu a área em que ele estava servindo. Sendo o único da base que sabia as precauções a serem tomadas no caso de neve cair, ele ficou do lado de fora resolvendo problemas em várias ocasiões durante a tempestade. Não demorou até meu pai descobrir que o Homem Branco podia viajar.

A tempestade durou dois dias. No segundo dia, meu pai precisou acordar cedo para descongelar as ruas e calçadas. Numa parte desolada da base, ele ficou surpreso ao ver outro soldado à distância e ficou preocupado quando percebeu que o homem não estava se movendo.

Com passos rápidos, meu pai se aproximou do homem a tempo de perceber algo. Mais uma vez, não havia pegadas deixadas na neve – e o soldado não tinha cor alguma, sendo uma forma branca detalhada com dois olhos completamente negros. Não fosse o choque, meu pai teria gritado. Em vez disso, meu pai sentiu-se empalidecer.

‘Ficou devendo’.

Dizendo isso, a figura desapareceu. Meu pai foi encontrado algum tempo depois, paralisado de medo e com os olhos fixos no horizonte, por um colega soldado. Ele deu a desculpa de que estava assim por causa da exaustão. Dois dias depois, uma de minhas tias ligou para avisar que meu avô tinha morrido. Meu pai não deu detalhes de como aconteceu; aparentemente uma queda enquanto alimentava os porcos.

Sem drama. Meu pai, compreensivelmente, não se importou tanto. Se o Homem Branco era o responsável pelo ‘acidente’, não tinha sido uma punição tão grande assim. Eventualmente, porém, meu pai chegou à conclusão de que a aparição do Homem Branco era mau agouro.

Já são quatro da manhã, e eu vou dormir. Amanhã, se alguém estiver interessado, eu contou as outras histórias que meu pai me contou. Espero que vocês tenham gostado, e deixo aqui uma pergunta:

Alguém tem alguma ideia do que essa coisa era, se meu pai não é só um maluco de pedra? Existe alguma lenda, urbana ou não, que seja parecida com o que ele descreveu?”

*Deliverance, em inglês, quer dizer “salvação” no sentido cristão. Deliverance on Ice poderia ser traduzido como “salvação no frio/gelo”, mas não seria a escolha completamente certa porque deliverance também é um termo usado em associação a cristãos fervorosos, do tipo interiorano, sem formação secular. Era isso que o autor estava descrevendo, por isso deixei o termo original.

**Gumby é o nome do personagem de massinha de modelar feito para o curta animado Gumbasia, lançado em 1953 por Arthur “Art” Clokey.

Como você deve imaginar, esse não é o fim dessa história. Semana que vem tem continuação.

Para ver a thread original, clique aqui.

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  3. não quero mais me apaixonar de novo

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  4. eu me odieo arrogante eu me odeio eu me odeio porque

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  9. E eu vou ficar chateada com você e você nem aí pra mim porque o Alec já tinha um "Beijo" é aquele colar do tipo do peter pan que ele da pra wendy, é quase igual. aí ele deu pra menina que ele ta namorando, aí ele ta então escrevendo pra criança. porque ele é um idiota que tava procurando talvez uma namorada.

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