O
pregoeiro público da Rua Majestade era bom no que fazia. Vestia-se com alinho e
sobriedade, o sino em sua mão brilhava como se fosse feito de ouro e as
palavras assumiam forma com tamanha perfeição em sua boca, com tanto alcance
vocal empregado nelas, que era como se ele fosse um amplificador de som e não
um homem comum. De pé em seu palanque nas primeiras horas da manhã, situado
pelo bom senso na esquina em que sua rua dava para a avenida principal do
Distrito da Coroa, ele repicava o sino numa mão e, com a outra erguida para
chamar a atenção dos poucos trabalhadores já acordados àquela hora, recitava:
—
A Academia Imperial declara como perdida a Ducentésima Vigésima Nona Expedição
Marítima! Aprovada pelo Grande Conselho e outorgada pelo voto unânime das
Grandes Famílias, a moção feita pelo Ministro de Incursões dá como mortos os
cinquenta acadêmicos que participavam da expedição para as misteriosas águas do
Mar de Atalanta, assim como os cento e catorze homens do mar que serviam de
tripulação para o veleiro Devorador. Criada para a exploração e pacificação de
território despaginado, a Ducentésima Vigésima Nona deu notícias pela última
vez no início do ano. Muitos foram os rumores de seu paradeiro desde então, sendo
apenas o último deles confirmado pelas autoridades: o aparecimento de pedaços
do navio na costa da Ibéria. Sem maiores evidências para atestar a esperança de
sobreviventes, o Ministério de Incursões oferece solidariedade aos familiares
dos membros da expedição e pede que...
O
Príncipe não conseguiu ouvir o resto do comunicado – o rugido em sua mente era
alto demais. Ele tinha conhecimento dos rumores sobre o Império deixar de lado
o programa de expansão marítima devido à alta incidência de fenômenos
despaginados no oceano, e também sabia sobre os boatos concernentes à completa
aniquilação dos expedicionários enviados justamente para o trecho de água que
impedia Jorge de fazer negócio com os iberos, mas a estupidez que se costuma
chamar de esperança o tinha impedido de aceitar a perda total. Aquela, Júlio
decidiu, tinha sido a última vez em que esperara pelo melhor.
A
neblina cinzenta cedia espaço ao dourado do sol ascendente, e o avançar da
manhã trazia uma bem-vinda onda de calor. Júlio abriu um botão da sobrecasaca
que o protegera do frio durante a madrugada, deixando o ar fresco lhe ventilar
o peito, e retirou o chapéu de abas largas que lhe escondia o rosto para
secá-lo com um abanar enérgico da condensação que acumulara-se nele. Passara a
noite inteira examinando o prédio do outro lado da rua, esperando por uma
oportunidade de invadi-lo, e tudo apontava para uma oportunidade.
Em
algum momento durante a fundação do império, o cortiço em questão tinha sido
uma casa nobre; era possível atestá-lo na arquitetura da fachada, que era verde
e cheia de arabescos amarelos em alto-relevo desenhando padrões que deveriam
ter sido insígnias e iniciais de sobrenomes. Enquanto transitava pelos telhados
circundantes para ter uma ideia melhor das possíveis entradas e saídas do
lugar, Júlio tivera tempo suficiente para conjecturar o que poderia ter
acontecido com os donos originais da propriedade. Que tipo de desgraça força um
nobre a vender uma propriedade no Distrito da Coroa? Que tipo de desonra
abatera-se sobre seu nome para que o legado dele fosse transformado num cortiço
para jovens desocupados?
Júlio
não sabia, mas pegou-se perguntando a si mesmo se a Mansão Saturnino teria um
fim parecido.
Alguém
dera uma festa justo na noite em que o Príncipe decidira invadir. Júlio já
estava do lado de dentro quando a gritaria começou, e o susto resultante quase
o fez cair dos caibros onde estivera empoleirado no pátio principal. Música,
pouca-vergonha e bebida abundante – um verdadeiro bacanal. Pela reação do
guarda capitalense que atendera às reclamações de barulho dos vizinhos, a
ocorrência era comum: o oficial fora recebido à porta com sorrisos e risadas,
entrara no prédio para uma visita delongada e saíra trôpego, sorridente e
guardando dinheiro nos bolsos do uniforme. Júlio, já na calçada do outro lado
da rua, maravilhou-se com a frouxidão do braço armado da lei naquelas bandas;
na favela onde crescera, a menor perturbação da ordem fora da época dos festivais
era sufocada com a urgência frenética que se costuma usar para apagar incêndios.
Também
pudera. Oficialmente, o cortiço servia de moradia para uma fraternidade de alunos
da Universidade Imperial – futuros arquitetos, advogados, cirurgiões e oficiais
do exército –, mas nas ruas o lugar era conhecido como um refúgio para
quaisquer jovens nobres com vontade de desaparecer. Durante suas rondas de
reconhecimento, Júlio vira várias moças com casamento marcado simplesmente
esperando a data passar, reconhecera um ou outro apostador compulsivo se
escondendo dos cobradores e notara a figura familiar e entristecida de um noivo
recém-caçado cujas esperanças de casamento foram arruinadas. Um guarda comum
não teria chance se tentasse prender qualquer membro de um grupo tão ilustre.
Era
fascinante, para Júlio, observar o comportamento daquela raça de seres humanos tão
diferentes. Ele assistira à festa de ângulos diferentes no decorrer da noite, e
se surpreendera com a selvageria com que a nova geração de nobres se entregava
aos prazeres da carne. Trocas de soco irrompiam ao menor sinal de animosidade,
virgindades se perdiam em público e a histeria coletiva com que os jovens
dançavam e cantavam não tinha nada a ver com o álcool. Ao Príncipe parecia que
eles tentavam se livrar do estigma da nobreza, transformarem-se em animais para
assim se tornarem capazes de perdoar a si próprios pelo crime de ser melhor que
o resto. E pensar que se estranhara com os hábitos de Lancelot e Luciana, os
coitados que se muito bebiam vinho nos banquetes e ficavam de namorico pelas
costas do pai.
A
festa só acabou quando o negrume do céu ganhou matizes de cinza. Os jovens que
não moravam propriamente no cortiço foram saindo às duplas e trios, cantando e
rindo de seus próprios ecos nas ruas desertas, e nenhum deles percebeu a figura
de chapéu enfurnada no escuro entre um poste e outro. O Príncipe esperou mais
algum tempo, ouvidos atentos ao sons no interior do cortiço, e quando deu por
si já estava em companhia do pregoeiro público e sua voz retumbantemente
límpida.
Se
Júlio não estava enganado, o quarto que William Marino dividia com um amigo ficava
na ala sul do cortiço. O Príncipe desabotoou a sobrecasaca por completo assim
que o silêncio passou a reinar absoluto no interior do prédio, retirou o chapéu
e descartou as peças de roupa numa lata de lixo próxima. As botas de couro
ainda não era ideais para a escalada, mas Júlio conseguiu chegar ao telhado
vizinho ao cortiço e através dele desceu para o interior do antro de
devassidão.
O
medo de acordar alguém desapareceu assim que o Príncipe, por engano, pisou nos
dedos de um rapaz que decidira usar o chão de um corredor no primeiro andar
como leito; a respiração plácida do jovem nobre não se alterou, e nenhum
registro da dor enrugou as feições desacordadas de seu rosto. Curioso, Júlio se
abaixou e conferiu os sinais vitais do rapaz; estava vivo, mas praticamente em
coma. Abrindo as pálpebras dele, Júlio confirmou suas suspeitas: as veias dos
olhos brilhavam no azul-relâmpago resultante do abuso de drogas despaginadas. Pó
de fada? Pirilimpimpim?
Enquanto
examinava o comatoso, Júlio foi surpreendido pelo surgimento de uma menina. Ela
estava nua da cintura para baixo, e desenho de seus seios era muito bem
delineado pela camisa de um homem muito maior que ela. Se a presença do
Príncipe lhe era estranha, ela não demonstrou; seus olhos vagavam com tremores
espasmódicos, sem foco, e quando percebeu o rapaz loiro agachado sobre o
desacordado ela abriu um largo sorriso e levou o dedo indicador aos lábios
trêmulos antes de desaparecer por uma porta.
Júlio
avançou por mais pessoas profundamente desacordadas e precisou conter-se para
não roubar as joias que elas usavam; o instinto era muito antigo, e por demais
enraizado, para ser abandonado por completo. Os nobres que não tinham se
entregado ao sono profundo e sem sonhos das drogas zanzavam de um cômodo para
outro, reclamando de dores e rindo de memórias confusas da noite passada. Mesmo
os que notaram o Príncipe transitando pelas dependências do cortiço não seriam
capazes de reconhecê-lo quando ficassem sóbrios.
Carlos
Eraquim, universitário que estudava para a função de memorizador protocolar, era
o amigo que acolhera William quando do advento de sua deserdação. Os Eraquim
não eram uma Família com F maiúsculo, mas a crescente influência deles na área
do comércio queria dizer que se tornariam uma em breve; era bom que o jovem
Carlos estivesse lá em baixo, com o rosto enterrado entre as coxas de uma
prostituta, quando Júlio destrancou a porta de seu quarto e se deixou entrar. O
que estava para acontecer poderia estragar as possíveis relações financeiras
entre os Eraquim e os Saturnino.
O
próprio William mal tinha participado da festa; subira para seus aposentos
pouco depois de uma garota tentar beijá-lo, e muito antes de as drogas pesadas
serem distribuídas. Júlio se aproximou da cama do deserdado com cuidado para
não acordá-lo e se sentou numa cadeira próxima. Ciente de que teria uma
conversa menos favorável se o despertasse, simplesmente olhou ao redor e
esperou.
O
quarto que ambos dividiam se parecia muito com o quarto de um memorizador em
treinamento que trouxera um colega para morar consigo mas o aconselhara a
interferir o mínimo possível. Aparatos construídos para o treino da memória
estavam espalhados por todo canto, assim como aparelhos para estimular
raciocínio lógico e outros exercícios mentais. A cama de William, provavelmente
retirada de um quarto vizinho com leitos de sobra, tinha sido encaixada num
canto próximo à janela e seus lençóis desarrumados eram a única marca da
presença dele no cômodo. Júlio esperava que o lorde Marino tivesse ao menos
deixado o filho trazer um retrato ou memento da família consigo, mas pelo visto
a roupa do corpo era tudo que William tinha.
—
O que está fazendo aqui?
O
Príncipe, distraído como estava, não reparara nos olhos verdes esbugalhados o
observando por baixo das cobertas. Ele sorriu para eles da forma mais amigável
que conseguiu.
—
Vim lhe ver.
Muito
lentamente, William espichou o rosto inchado de sono para fora das camadas de
lençóis que ele acreditava servirem de proteção contra o visitante indesejado:
—
Me ver.
—
Que festança, essa a que você deu ontem — Júlio começou, depondo no colo as
mãos com os dedos cruzados. Queria parecer inofensivo. — Achei que ainda
estaria sofrendo pela minha irmã, mas fiquei feliz quando vi o quão bem superou
ela. Três ao mesmo tempo? — E assoviou, afetando assombro.
—
Vá se foder, seu pirralho — William pôs-se sentado, fúria despertando-o por
completo. — O que você quer? Acha que inventar mentiras a meu respeito pode
piorar ainda mais minha reputação? Acha que... — A raiva desmanchou-se num
momento fugaz, dando lugar ao mais completo desespero. O deserdado começou a
soluçar. — Acha que sobrou alguma coisa pra você destruir? Um menino de treze
anos me caçou. Minha noiva me acha um fraco imprestável. Meu pai deu um
banquete pra comemorar minha derrota!
Júlio
rapidamente tratou de disfarçar sua risada como tosse. Ele não sabia daquela
última parte.
—
Desculpe — pediu, os ombros sacudindo de riso. — Esse lugar ataca minha
alergia. Muita poeira.
William
passou um longo momento encarando Júlio com seus olhos marejados antes de
gritar:
—
Você é um monstro!
Algo
no tremor desalentado com que o Marino deserdado disse aquilo fez Júlio levá-lo
a sério.
—
Tenho quinze anos, não treze — o Príncipe disse. — Se é que isso te faz sentir
melhor.
—
Não — William vociferou. — Não, não faz.
—
E o que faria?
Um
riso trêmulo, meio desvairado, confundiu-se com o choro na garganta do nobre de
cabelos pretos.
—
Ah, pelo amor — ele disse. — Eu não sei. Talvez recuperar meu nome? Acha que
pode fazer isso? — Riu de novo, tristeza profunda em seus olhos. — Se não for
muito incômodo, acha que pode fazer Luciana se apaixonar por mim de novo também?
E que tal dar uma surra no velho que já chamei de pai? Nele e nos meus irmãos
todos, aquelas víboras traiçoeiras...
—
Que mais?
William
chorou um pouquinho mais antes de perceber a pergunta de Júlio. Ele ergueu o
rosto das mãos com uma expressão mista de descrença e medo, mas não disse nada.
—
Se eu fizer tudo isso — o Príncipe insistiu —, posso contar com sua ajuda?
Mais
tarde, naquele mesmo dia, Júlio Augusto Saturnino tinha um encontro com lady Medéia
Madalena Grená. A senhora, que então encabeçava a extensa Família Grená,
aceitara ao convite de passar uma temporada na Mansão Saturnino feito em pessoa
pelo cabeça da outra Família; lorde Luciano, que retornava de sua viagem
atrasada ao Solar Grená com a dona da casa, mandara avisar que a comitiva dos visitantes
chegaria para o almoço. O Príncipe, quase literalmente em certos casos, soltou
os cachorros na criadagem para que as preparações para a recepção fossem
terminadas a tempo. Era muito mais fácil fazer os empregados trabalharem quando
Tomás não sabotava as ordens logo depois de elas serem dadas; o camareiro tinha
sumido.
Foi
uma surpresa para Júlio que lady Grená tivesse aceitado o convite tão rápido.
Ele antecipara certo nível de hesitação por parte da líder de uma Família tão
antiga, especialmente considerando o quão perto os Saturnino chegaram da
desgraça absoluta, mas não seria insensato de ver tamanha prontidão como algo
ruim. O resto da corte imperial estava atenta aos menores movimentos de lady Grená,
e sua decisão de vir visitar com tamanho bom-grado serviria de exemplo a ser
seguido pelas demais Famílias. O Príncipe estava pronto para elas, também; completa
a reforma, a Mansão Saturnino tornou-se capaz de receber o imperador.
A
antiga casa, assim como suas dependências, fora expandida em todas as direções.
Colunas foram reforçadas com mármore, fachadas foram refeitas à moda helênica,
ladrilhos e lâmpadas coloridas foram implementadas nos jardins, bandeiras,
pinturas e estátuas novas foram posicionadas para exibir com soberba as cores
Saturnino – tudo isso do lado de fora. A dívida do Príncipe com os tartarianos
justificava-se com a riqueza dos móveis em cada um das dezenas de cômodos da
Mansão; era evidente que uma quantidade anormal de dinheiro havia sido gasta
com a decoração amadeirada, à moda do império, e na infinidade de quadros,
bustos, castiçais e lustres que povoavam cada canto deixado livre pelos móveis
que ainda cheiravam a verniz recém-aplicado. Cada lâmina de vidro da casa havia
sido trocada por fibras mais cristalinas e resistentes, cada pedaço de azulejo
antigo no soalho do andar térreo tinha sido substituído por rocha sólida
importada de Velha Albion e até o gramado do pátio fora replantado por especialistas
botânicos.
Quando
lady Grená chegou, o Príncipe fez questão de dar-lhe o tour completo pela propriedade; isto é, fez questão que o pai assim
o fizesse. Júlio Saturnino nem sequer ousou falar com a nobre senhora no
momento de sua chegada – posicionou-se no fundo da comitiva de boas-vindas, um
passo à frente da criadagem comum, como mandava o protocolo para adotados.
Lancelot, numa das raras ocasiões em que deixara um barbeiro chegar perto de
sua cabeleira rebelde, fez bonito no papel de dono da casa: vestiu-se bem,
lembrou-se de cada pequena etapa do protocolo e enunciou o discurso de
boas-vindas sem uma única falha. Luciana, que só saíra do quarto porque o pai
ameaçara mandá-la para um sanatório se não obedecesse, conseguiu por milagre
não estragar a pompa da cerimônia com seu vestido simples, seu cabelo mal
penteado e seu olhar de morta. Lorde Leonardo, que segundo o protocolo era
recebido como visita junto com a convidada, não conteve o orgulho de ver suas
crianças se portando com tanta formalidade. Só ele cumprimentou Júlio,
sussurrando em seu ouvido que o trabalho que fizera tinha sido incrível. O
filho adotivo sorveu aquela pequena dose de reconhecimento como se fosse água
depois de passar dias no deserto.
Os
Grená tentaram disfarçar, mas era visível o espanto com que observavam a Mansão
onde passariam o resto do inverno. A comitiva era composta por cento e três
pessoas – vinte e três nobres, cinquenta servos e um esquadrão de trinta
soldados –, e cada uma delas parecia adequadamente incrédula ante a magnificência
do lugar. Histórias haviam sido contadas sobre o estado abandonado da
propriedade dos Saturnino, é claro, e era impossível imaginar que mesmo com
tanto dinheiro uma Família seria capaz se recuperar-se tão rápido. Observando
as expressões curiosas, descrentes e admiradas dos primos, genros, filhos e
netos de lady Grená, Júlio divertiu-se antecipando o tipo de história que se
contaria quando eles fossem embora.
Lancelot
distribuiu as visitas segundo Júlio tinha decidido. Os soldados Grená – todos com
o brasão violeta da Família no peito, longe de serem simples mercenários –
foram acomodados no quartel da Mansão; a criadagem pessoal ficou com seus
respectivos patrões nos quartos de visita. Os memorizadores a serviço dos
visitantes tiveram uma longa conversa com Gaspar, que lhes respondeu perguntas
sobre a casa e seu funcionamento e lhes deu algumas informações a mais, como
cortesia e prova de boa-fé. O almoço aconteceu enquanto tais medidas eram
tomadas, com Lancelot pedindo licença em intervalos regulares para se assegurar
de que os Grená estavam se acomodando bem, e quando a refeição terminou foi
como se lady Medéia estivesse morando entre os Saturnino desde sempre.
A
própria matriarca dos visitantes era uma visão singular. Vestia-se em violeta –
tanto na cor quanto na flor. Seu vestido era uma mescla de tecido e vegetação,
assim como os enfeites em seu cabelo eram feitos de pétalas e pedras preciosas.
Era uma mulher muito bonita para os quase cinquenta anos que tinha, e seu corpo
era adequadamente conservado. Júlio procurou por fios grisalhos no penteado
elaborado de lady Grená mas, enquanto os Saturnino ostentavam a descoloração
prematura como assinatura de seu sangue, o preto profundo com reflexo arroxeado
servia como herança de todos os descendentes dela independentemente da idade. O
Príncipe decidiu que não seria um sacrifício fazer o que precisava ser feito.
Mais
tarde, quando o sol invernal afugentou as nuvens o suficiente para se passar
por primaveril e as piscinas cobertas foram usadas para afugentar o calor,
Júlio deitou-se numa espreguiçadeira à beira d’água sabendo que estava na
posição certa para que lady Grená, do outro lado da piscina, o visse. Muitos
dos membros da comitiva visitante usavam trajes de banho, como era a moda entre
os nobres ao oeste de Nova Soteros, mas um número quase igual deles seguia o
costume da capital de banhar-se sem roupas; Júlio, como se esperava, deitou-se
em sua espreguiçadeira completamente nu. Ele deixou as pernas bem abertas, para
que lady Grená tivesse uma boa visão, antes de lançar-se na água e competir
natação com os visitantes mais jovens. No fim, Júlio perdeu o torneio
improvisado. Ao ver a fome nos olhos escuros de lady Grená, porém, sentiu-se um
vencedor. Um servo bateu à porta de seus aposentos naquela noite e lhe disse
que seria bem-vindo na câmara de dormir dela quando desejasse.
—
E aí? — Ravena quis saber. — Foi boa, a transa?
Ela
e Júlio dividiam um cigarro no telhado da Mansão Saturnino, costume adquirido
desde que o Príncipe se mudara para lá; não havia na propriedade um lugar mais
seguro para que ambos pudessem conversar. Ele vestia apenas as calças de seu
pijama porque fora interrompido pela chegada da ladra enquanto trocava de
roupa, e se arrependera de ter subido sem camisa não só pelo frio como também
pelo modo como as mordidas e arranhões em seu peito e costas ficavam evidentes
sob a luz do luar. Ravena examinava as marcas com uma expressão estranha no
rosto, um julgamento que nada tinha a ver com o oferecimento do amigo, e o escrutínio
dela o deixava desconfortável. A vista do detalho, entretanto, era boa:
quilômetros e quilômetros de mar aberto e calmo, liso como um espelho d’água,
sob a luz prateada da lua refletida na espuma criada pelo atrito do vento. Júlio
concentrou-se nela em silêncio. Eventualmente, Ravena entendeu a ausência de
palavras como um pedido para mudar de assunto. Ela pegou o cigarro de volta,
roçando os dedos mornos nos gélidos de Júlio, e puxou um trago. A fumaça ficou
entre eles por um bom tempo até uma lufada de ar dissolvê-la.
—
Afonso veio me perguntar quando é que você vai agir — Ravena disse, de repente.
A voz dela soava triste, distante. — A questão dos candidatos, digo.
—
Por que ele te perguntaria isso?
Parte
da irritação na voz de Júlio não vinha do assunto do qual estavam falando, e
sim da atitude de Ravena. Ela sabia sobre a parte do plano que envolvia lady
Grená e o apetite insaciável que ela tinha por rapazes jovens, então por que
parecer horrorizada por causa de umas marcas de mordida? Por que parecer triste
como se o Príncipe estivesse se degradando de alguma forma?
—
Porque eu disse pra ele que você cuidaria disso sozinho — Ravena respondeu, a
voz hesitante como se ela tivesse acabado de levar um tapa no rosto. Ela tornou
a sugar através do cigarro, e quando voltou a falar suas palavras saíram
esfumaçadas: — Sei que não deveria ter feito isso, mas você sabe como o Afonso
é. Eu queria que ele te deixasse em paz por um tempo. Não queria que ele
pensasse que você amoleceu.
Júlio
apertou os olhos na direção de Ravena sem realmente olhar para ela.
—
E por que — ele rosnou, pausando entre cada palavra — ele pensaria isso?
—
Você deveria ter matado um deles há semanas — a ladra apagou o cigarro numa
telha, concentrando os olhos na atividade para evitar o contato visual. — Com
os problemas da dívida e todo o resto, os rapazes estão ansiosos. Eu estou
ansiosa. Se alguém além de mim souber que você está atrasando o cronograma e
colocando o plano em risco porque não quer matar alguém...
—
Ah, é isso que estou fazendo? — Júlio levantou a voz. Ele finalmente olhou para
Ravena, para o rosto pesaroso dela, e percebeu que não conseguia aguentar a
visão por muito tempo. Seus olhos voltaram para o mar; sua mente tentou emular
a calma dele. — E o que te faz pensar que você “sabe” de alguma coisa?
—
Eu te conheço.
Ela
conhecia mesmo.
Uma
parte essencial do plano do Príncipe, talvez mais essencial que conseguir um
sobrenome nobre e seduzir uma solteirona rica, dependia da morte de um dos
quatro candidatos à única vaga disponível na Academia Imperial. Se executada
corretamente para parecer um acidente e acontecesse antes da prova de admissão,
a morte de um dos quatro abriria espaço para que um novo candidato ganhasse a
chance de ingressar na Academia. Matar não era um problema, assim como não o
era fazer um assassinato se parecer com um infortúnio do destino; o que
bloqueava Júlio nessa parte do plano era não saber qual dos candidatos ia
morrer.
Seus
nomes eram Jéssica Formoso, Aleandro Miranda, Nathaniel Gonçalves e Paulo
Firel. Júlio os vinha estudando há semanas, desde que os pregoeiros começaram a
anunciar que eram eles os quatro candidatos escolhidos para o teste de
admissão, tentando encontrar um motivo forte o bastante para justificar o fim
da vida de um deles. Seria mais fácil se fosse apenas um candidato, se a
situação fosse urgente o bastante para ativar o instinto de sobrevivência do
Príncipe; mas com quatro, tudo no que ele conseguia pensar era na vida que ele
estaria encerrando injustamente para alavancar a sua própria. Era um tipo
estranho de remorso, e Júlio não era capaz de se livrar dele mesmo quando
pensava nas pessoas que já tinha matado e nas que estava disposto a eliminar
para conseguir seu objetivo.
Ravena
tocou seu ombro. Ela podia ter dito alguma coisa, ou expandido o contato num
abraço, mas não fez nada disso; ela também podia ter recuado ante o tremor que
se espalhou pelo corpo de Júlio, mas sua mão permaneceu firme. Assim eles
ficaram, paralisados ao vento como um par de gárgulas no telhado da Mansão, até
a ladra retraiu o braço e se pôs de pé. Júlio olhou para ela finalmente, e em
vez de pesar o que viu em seu rosto foi uma máscara insensível de seriedade.
—
Você tem uma semana, meu Príncipe — ela disse. — Depois disso, eu decido por
você.
Júlio
ficou sozinho no telhado por muito tempo depois de Ravena ter partido. Sem o
cheiro do cigarro para disfarçá-lo, o perfume de lady Grená envolveu suas
narinas como uma fumaça sufocante.
[Você pode acompanhar essa história pelo Nyah! e pelo Wattpad]
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