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Príncipe das Letras — Capítulo Três — Barganhas e Alternativas

 

O pregoeiro público da Rua Majestade era bom no que fazia. Vestia-se com alinho e sobriedade, o sino em sua mão brilhava como se fosse feito de ouro e as palavras assumiam forma com tamanha perfeição em sua boca, com tanto alcance vocal empregado nelas, que era como se ele fosse um amplificador de som e não um homem comum. De pé em seu palanque nas primeiras horas da manhã, situado pelo bom senso na esquina em que sua rua dava para a avenida principal do Distrito da Coroa, ele repicava o sino numa mão e, com a outra erguida para chamar a atenção dos poucos trabalhadores já acordados àquela hora, recitava:

— A Academia Imperial declara como perdida a Ducentésima Vigésima Nona Expedição Marítima! Aprovada pelo Grande Conselho e outorgada pelo voto unânime das Grandes Famílias, a moção feita pelo Ministro de Incursões dá como mortos os cinquenta acadêmicos que participavam da expedição para as misteriosas águas do Mar de Atalanta, assim como os cento e catorze homens do mar que serviam de tripulação para o veleiro Devorador. Criada para a exploração e pacificação de território despaginado, a Ducentésima Vigésima Nona deu notícias pela última vez no início do ano. Muitos foram os rumores de seu paradeiro desde então, sendo apenas o último deles confirmado pelas autoridades: o aparecimento de pedaços do navio na costa da Ibéria. Sem maiores evidências para atestar a esperança de sobreviventes, o Ministério de Incursões oferece solidariedade aos familiares dos membros da expedição e pede que...

O Príncipe não conseguiu ouvir o resto do comunicado – o rugido em sua mente era alto demais. Ele tinha conhecimento dos rumores sobre o Império deixar de lado o programa de expansão marítima devido à alta incidência de fenômenos despaginados no oceano, e também sabia sobre os boatos concernentes à completa aniquilação dos expedicionários enviados justamente para o trecho de água que impedia Jorge de fazer negócio com os iberos, mas a estupidez que se costuma chamar de esperança o tinha impedido de aceitar a perda total. Aquela, Júlio decidiu, tinha sido a última vez em que esperara pelo melhor.

A neblina cinzenta cedia espaço ao dourado do sol ascendente, e o avançar da manhã trazia uma bem-vinda onda de calor. Júlio abriu um botão da sobrecasaca que o protegera do frio durante a madrugada, deixando o ar fresco lhe ventilar o peito, e retirou o chapéu de abas largas que lhe escondia o rosto para secá-lo com um abanar enérgico da condensação que acumulara-se nele. Passara a noite inteira examinando o prédio do outro lado da rua, esperando por uma oportunidade de invadi-lo, e tudo apontava para uma oportunidade.

Em algum momento durante a fundação do império, o cortiço em questão tinha sido uma casa nobre; era possível atestá-lo na arquitetura da fachada, que era verde e cheia de arabescos amarelos em alto-relevo desenhando padrões que deveriam ter sido insígnias e iniciais de sobrenomes. Enquanto transitava pelos telhados circundantes para ter uma ideia melhor das possíveis entradas e saídas do lugar, Júlio tivera tempo suficiente para conjecturar o que poderia ter acontecido com os donos originais da propriedade. Que tipo de desgraça força um nobre a vender uma propriedade no Distrito da Coroa? Que tipo de desonra abatera-se sobre seu nome para que o legado dele fosse transformado num cortiço para jovens desocupados?

Júlio não sabia, mas pegou-se perguntando a si mesmo se a Mansão Saturnino teria um fim parecido.

Alguém dera uma festa justo na noite em que o Príncipe decidira invadir. Júlio já estava do lado de dentro quando a gritaria começou, e o susto resultante quase o fez cair dos caibros onde estivera empoleirado no pátio principal. Música, pouca-vergonha e bebida abundante – um verdadeiro bacanal. Pela reação do guarda capitalense que atendera às reclamações de barulho dos vizinhos, a ocorrência era comum: o oficial fora recebido à porta com sorrisos e risadas, entrara no prédio para uma visita delongada e saíra trôpego, sorridente e guardando dinheiro nos bolsos do uniforme. Júlio, já na calçada do outro lado da rua, maravilhou-se com a frouxidão do braço armado da lei naquelas bandas; na favela onde crescera, a menor perturbação da ordem fora da época dos festivais era sufocada com a urgência frenética que se costuma usar para apagar incêndios.

Também pudera. Oficialmente, o cortiço servia de moradia para uma fraternidade de alunos da Universidade Imperial – futuros arquitetos, advogados, cirurgiões e oficiais do exército –, mas nas ruas o lugar era conhecido como um refúgio para quaisquer jovens nobres com vontade de desaparecer. Durante suas rondas de reconhecimento, Júlio vira várias moças com casamento marcado simplesmente esperando a data passar, reconhecera um ou outro apostador compulsivo se escondendo dos cobradores e notara a figura familiar e entristecida de um noivo recém-caçado cujas esperanças de casamento foram arruinadas. Um guarda comum não teria chance se tentasse prender qualquer membro de um grupo tão ilustre.

Era fascinante, para Júlio, observar o comportamento daquela raça de seres humanos tão diferentes. Ele assistira à festa de ângulos diferentes no decorrer da noite, e se surpreendera com a selvageria com que a nova geração de nobres se entregava aos prazeres da carne. Trocas de soco irrompiam ao menor sinal de animosidade, virgindades se perdiam em público e a histeria coletiva com que os jovens dançavam e cantavam não tinha nada a ver com o álcool. Ao Príncipe parecia que eles tentavam se livrar do estigma da nobreza, transformarem-se em animais para assim se tornarem capazes de perdoar a si próprios pelo crime de ser melhor que o resto. E pensar que se estranhara com os hábitos de Lancelot e Luciana, os coitados que se muito bebiam vinho nos banquetes e ficavam de namorico pelas costas do pai.

A festa só acabou quando o negrume do céu ganhou matizes de cinza. Os jovens que não moravam propriamente no cortiço foram saindo às duplas e trios, cantando e rindo de seus próprios ecos nas ruas desertas, e nenhum deles percebeu a figura de chapéu enfurnada no escuro entre um poste e outro. O Príncipe esperou mais algum tempo, ouvidos atentos ao sons no interior do cortiço, e quando deu por si já estava em companhia do pregoeiro público e sua voz retumbantemente límpida.

Se Júlio não estava enganado, o quarto que William Marino dividia com um amigo ficava na ala sul do cortiço. O Príncipe desabotoou a sobrecasaca por completo assim que o silêncio passou a reinar absoluto no interior do prédio, retirou o chapéu e descartou as peças de roupa numa lata de lixo próxima. As botas de couro ainda não era ideais para a escalada, mas Júlio conseguiu chegar ao telhado vizinho ao cortiço e através dele desceu para o interior do antro de devassidão.

O medo de acordar alguém desapareceu assim que o Príncipe, por engano, pisou nos dedos de um rapaz que decidira usar o chão de um corredor no primeiro andar como leito; a respiração plácida do jovem nobre não se alterou, e nenhum registro da dor enrugou as feições desacordadas de seu rosto. Curioso, Júlio se abaixou e conferiu os sinais vitais do rapaz; estava vivo, mas praticamente em coma. Abrindo as pálpebras dele, Júlio confirmou suas suspeitas: as veias dos olhos brilhavam no azul-relâmpago resultante do abuso de drogas despaginadas. Pó de fada? Pirilimpimpim?

Enquanto examinava o comatoso, Júlio foi surpreendido pelo surgimento de uma menina. Ela estava nua da cintura para baixo, e desenho de seus seios era muito bem delineado pela camisa de um homem muito maior que ela. Se a presença do Príncipe lhe era estranha, ela não demonstrou; seus olhos vagavam com tremores espasmódicos, sem foco, e quando percebeu o rapaz loiro agachado sobre o desacordado ela abriu um largo sorriso e levou o dedo indicador aos lábios trêmulos antes de desaparecer por uma porta.

Júlio avançou por mais pessoas profundamente desacordadas e precisou conter-se para não roubar as joias que elas usavam; o instinto era muito antigo, e por demais enraizado, para ser abandonado por completo. Os nobres que não tinham se entregado ao sono profundo e sem sonhos das drogas zanzavam de um cômodo para outro, reclamando de dores e rindo de memórias confusas da noite passada. Mesmo os que notaram o Príncipe transitando pelas dependências do cortiço não seriam capazes de reconhecê-lo quando ficassem sóbrios.

Carlos Eraquim, universitário que estudava para a função de memorizador protocolar, era o amigo que acolhera William quando do advento de sua deserdação. Os Eraquim não eram uma Família com F maiúsculo, mas a crescente influência deles na área do comércio queria dizer que se tornariam uma em breve; era bom que o jovem Carlos estivesse lá em baixo, com o rosto enterrado entre as coxas de uma prostituta, quando Júlio destrancou a porta de seu quarto e se deixou entrar. O que estava para acontecer poderia estragar as possíveis relações financeiras entre os Eraquim e os Saturnino.

O próprio William mal tinha participado da festa; subira para seus aposentos pouco depois de uma garota tentar beijá-lo, e muito antes de as drogas pesadas serem distribuídas. Júlio se aproximou da cama do deserdado com cuidado para não acordá-lo e se sentou numa cadeira próxima. Ciente de que teria uma conversa menos favorável se o despertasse, simplesmente olhou ao redor e esperou.

O quarto que ambos dividiam se parecia muito com o quarto de um memorizador em treinamento que trouxera um colega para morar consigo mas o aconselhara a interferir o mínimo possível. Aparatos construídos para o treino da memória estavam espalhados por todo canto, assim como aparelhos para estimular raciocínio lógico e outros exercícios mentais. A cama de William, provavelmente retirada de um quarto vizinho com leitos de sobra, tinha sido encaixada num canto próximo à janela e seus lençóis desarrumados eram a única marca da presença dele no cômodo. Júlio esperava que o lorde Marino tivesse ao menos deixado o filho trazer um retrato ou memento da família consigo, mas pelo visto a roupa do corpo era tudo que William tinha.

— O que está fazendo aqui?

O Príncipe, distraído como estava, não reparara nos olhos verdes esbugalhados o observando por baixo das cobertas. Ele sorriu para eles da forma mais amigável que conseguiu.

— Vim lhe ver.

Muito lentamente, William espichou o rosto inchado de sono para fora das camadas de lençóis que ele acreditava servirem de proteção contra o visitante indesejado:

— Me ver.

— Que festança, essa a que você deu ontem — Júlio começou, depondo no colo as mãos com os dedos cruzados. Queria parecer inofensivo. — Achei que ainda estaria sofrendo pela minha irmã, mas fiquei feliz quando vi o quão bem superou ela. Três ao mesmo tempo? — E assoviou, afetando assombro.

— Vá se foder, seu pirralho — William pôs-se sentado, fúria despertando-o por completo. — O que você quer? Acha que inventar mentiras a meu respeito pode piorar ainda mais minha reputação? Acha que... — A raiva desmanchou-se num momento fugaz, dando lugar ao mais completo desespero. O deserdado começou a soluçar. — Acha que sobrou alguma coisa pra você destruir? Um menino de treze anos me caçou. Minha noiva me acha um fraco imprestável. Meu pai deu um banquete pra comemorar minha derrota!

Júlio rapidamente tratou de disfarçar sua risada como tosse. Ele não sabia daquela última parte.

— Desculpe — pediu, os ombros sacudindo de riso. — Esse lugar ataca minha alergia. Muita poeira.

William passou um longo momento encarando Júlio com seus olhos marejados antes de gritar:

— Você é um monstro!

Algo no tremor desalentado com que o Marino deserdado disse aquilo fez Júlio levá-lo a sério.

— Tenho quinze anos, não treze — o Príncipe disse. — Se é que isso te faz sentir melhor.

— Não — William vociferou. — Não, não faz.

— E o que faria?

Um riso trêmulo, meio desvairado, confundiu-se com o choro na garganta do nobre de cabelos pretos.

— Ah, pelo amor — ele disse. — Eu não sei. Talvez recuperar meu nome? Acha que pode fazer isso? — Riu de novo, tristeza profunda em seus olhos. — Se não for muito incômodo, acha que pode fazer Luciana se apaixonar por mim de novo também? E que tal dar uma surra no velho que já chamei de pai? Nele e nos meus irmãos todos, aquelas víboras traiçoeiras...

— Que mais?

William chorou um pouquinho mais antes de perceber a pergunta de Júlio. Ele ergueu o rosto das mãos com uma expressão mista de descrença e medo, mas não disse nada.

— Se eu fizer tudo isso — o Príncipe insistiu —, posso contar com sua ajuda?

Mais tarde, naquele mesmo dia, Júlio Augusto Saturnino tinha um encontro com lady Medéia Madalena Grená. A senhora, que então encabeçava a extensa Família Grená, aceitara ao convite de passar uma temporada na Mansão Saturnino feito em pessoa pelo cabeça da outra Família; lorde Luciano, que retornava de sua viagem atrasada ao Solar Grená com a dona da casa, mandara avisar que a comitiva dos visitantes chegaria para o almoço. O Príncipe, quase literalmente em certos casos, soltou os cachorros na criadagem para que as preparações para a recepção fossem terminadas a tempo. Era muito mais fácil fazer os empregados trabalharem quando Tomás não sabotava as ordens logo depois de elas serem dadas; o camareiro tinha sumido.

Foi uma surpresa para Júlio que lady Grená tivesse aceitado o convite tão rápido. Ele antecipara certo nível de hesitação por parte da líder de uma Família tão antiga, especialmente considerando o quão perto os Saturnino chegaram da desgraça absoluta, mas não seria insensato de ver tamanha prontidão como algo ruim. O resto da corte imperial estava atenta aos menores movimentos de lady Grená, e sua decisão de vir visitar com tamanho bom-grado serviria de exemplo a ser seguido pelas demais Famílias. O Príncipe estava pronto para elas, também; completa a reforma, a Mansão Saturnino tornou-se capaz de receber o imperador.

A antiga casa, assim como suas dependências, fora expandida em todas as direções. Colunas foram reforçadas com mármore, fachadas foram refeitas à moda helênica, ladrilhos e lâmpadas coloridas foram implementadas nos jardins, bandeiras, pinturas e estátuas novas foram posicionadas para exibir com soberba as cores Saturnino – tudo isso do lado de fora. A dívida do Príncipe com os tartarianos justificava-se com a riqueza dos móveis em cada um das dezenas de cômodos da Mansão; era evidente que uma quantidade anormal de dinheiro havia sido gasta com a decoração amadeirada, à moda do império, e na infinidade de quadros, bustos, castiçais e lustres que povoavam cada canto deixado livre pelos móveis que ainda cheiravam a verniz recém-aplicado. Cada lâmina de vidro da casa havia sido trocada por fibras mais cristalinas e resistentes, cada pedaço de azulejo antigo no soalho do andar térreo tinha sido substituído por rocha sólida importada de Velha Albion e até o gramado do pátio fora replantado por especialistas botânicos.

Quando lady Grená chegou, o Príncipe fez questão de dar-lhe o tour completo pela propriedade; isto é, fez questão que o pai assim o fizesse. Júlio Saturnino nem sequer ousou falar com a nobre senhora no momento de sua chegada – posicionou-se no fundo da comitiva de boas-vindas, um passo à frente da criadagem comum, como mandava o protocolo para adotados. Lancelot, numa das raras ocasiões em que deixara um barbeiro chegar perto de sua cabeleira rebelde, fez bonito no papel de dono da casa: vestiu-se bem, lembrou-se de cada pequena etapa do protocolo e enunciou o discurso de boas-vindas sem uma única falha. Luciana, que só saíra do quarto porque o pai ameaçara mandá-la para um sanatório se não obedecesse, conseguiu por milagre não estragar a pompa da cerimônia com seu vestido simples, seu cabelo mal penteado e seu olhar de morta. Lorde Leonardo, que segundo o protocolo era recebido como visita junto com a convidada, não conteve o orgulho de ver suas crianças se portando com tanta formalidade. Só ele cumprimentou Júlio, sussurrando em seu ouvido que o trabalho que fizera tinha sido incrível. O filho adotivo sorveu aquela pequena dose de reconhecimento como se fosse água depois de passar dias no deserto.

Os Grená tentaram disfarçar, mas era visível o espanto com que observavam a Mansão onde passariam o resto do inverno. A comitiva era composta por cento e três pessoas – vinte e três nobres, cinquenta servos e um esquadrão de trinta soldados –, e cada uma delas parecia adequadamente incrédula ante a magnificência do lugar. Histórias haviam sido contadas sobre o estado abandonado da propriedade dos Saturnino, é claro, e era impossível imaginar que mesmo com tanto dinheiro uma Família seria capaz se recuperar-se tão rápido. Observando as expressões curiosas, descrentes e admiradas dos primos, genros, filhos e netos de lady Grená, Júlio divertiu-se antecipando o tipo de história que se contaria quando eles fossem embora.

Lancelot distribuiu as visitas segundo Júlio tinha decidido. Os soldados Grená – todos com o brasão violeta da Família no peito, longe de serem simples mercenários – foram acomodados no quartel da Mansão; a criadagem pessoal ficou com seus respectivos patrões nos quartos de visita. Os memorizadores a serviço dos visitantes tiveram uma longa conversa com Gaspar, que lhes respondeu perguntas sobre a casa e seu funcionamento e lhes deu algumas informações a mais, como cortesia e prova de boa-fé. O almoço aconteceu enquanto tais medidas eram tomadas, com Lancelot pedindo licença em intervalos regulares para se assegurar de que os Grená estavam se acomodando bem, e quando a refeição terminou foi como se lady Medéia estivesse morando entre os Saturnino desde sempre.

A própria matriarca dos visitantes era uma visão singular. Vestia-se em violeta – tanto na cor quanto na flor. Seu vestido era uma mescla de tecido e vegetação, assim como os enfeites em seu cabelo eram feitos de pétalas e pedras preciosas. Era uma mulher muito bonita para os quase cinquenta anos que tinha, e seu corpo era adequadamente conservado. Júlio procurou por fios grisalhos no penteado elaborado de lady Grená mas, enquanto os Saturnino ostentavam a descoloração prematura como assinatura de seu sangue, o preto profundo com reflexo arroxeado servia como herança de todos os descendentes dela independentemente da idade. O Príncipe decidiu que não seria um sacrifício fazer o que precisava ser feito.

Mais tarde, quando o sol invernal afugentou as nuvens o suficiente para se passar por primaveril e as piscinas cobertas foram usadas para afugentar o calor, Júlio deitou-se numa espreguiçadeira à beira d’água sabendo que estava na posição certa para que lady Grená, do outro lado da piscina, o visse. Muitos dos membros da comitiva visitante usavam trajes de banho, como era a moda entre os nobres ao oeste de Nova Soteros, mas um número quase igual deles seguia o costume da capital de banhar-se sem roupas; Júlio, como se esperava, deitou-se em sua espreguiçadeira completamente nu. Ele deixou as pernas bem abertas, para que lady Grená tivesse uma boa visão, antes de lançar-se na água e competir natação com os visitantes mais jovens. No fim, Júlio perdeu o torneio improvisado. Ao ver a fome nos olhos escuros de lady Grená, porém, sentiu-se um vencedor. Um servo bateu à porta de seus aposentos naquela noite e lhe disse que seria bem-vindo na câmara de dormir dela quando desejasse.

— E aí? — Ravena quis saber. — Foi boa, a transa?

Ela e Júlio dividiam um cigarro no telhado da Mansão Saturnino, costume adquirido desde que o Príncipe se mudara para lá; não havia na propriedade um lugar mais seguro para que ambos pudessem conversar. Ele vestia apenas as calças de seu pijama porque fora interrompido pela chegada da ladra enquanto trocava de roupa, e se arrependera de ter subido sem camisa não só pelo frio como também pelo modo como as mordidas e arranhões em seu peito e costas ficavam evidentes sob a luz do luar. Ravena examinava as marcas com uma expressão estranha no rosto, um julgamento que nada tinha a ver com o oferecimento do amigo, e o escrutínio dela o deixava desconfortável. A vista do detalho, entretanto, era boa: quilômetros e quilômetros de mar aberto e calmo, liso como um espelho d’água, sob a luz prateada da lua refletida na espuma criada pelo atrito do vento. Júlio concentrou-se nela em silêncio. Eventualmente, Ravena entendeu a ausência de palavras como um pedido para mudar de assunto. Ela pegou o cigarro de volta, roçando os dedos mornos nos gélidos de Júlio, e puxou um trago. A fumaça ficou entre eles por um bom tempo até uma lufada de ar dissolvê-la.

— Afonso veio me perguntar quando é que você vai agir — Ravena disse, de repente. A voz dela soava triste, distante. — A questão dos candidatos, digo.

— Por que ele te perguntaria isso?

Parte da irritação na voz de Júlio não vinha do assunto do qual estavam falando, e sim da atitude de Ravena. Ela sabia sobre a parte do plano que envolvia lady Grená e o apetite insaciável que ela tinha por rapazes jovens, então por que parecer horrorizada por causa de umas marcas de mordida? Por que parecer triste como se o Príncipe estivesse se degradando de alguma forma?

— Porque eu disse pra ele que você cuidaria disso sozinho — Ravena respondeu, a voz hesitante como se ela tivesse acabado de levar um tapa no rosto. Ela tornou a sugar através do cigarro, e quando voltou a falar suas palavras saíram esfumaçadas: — Sei que não deveria ter feito isso, mas você sabe como o Afonso é. Eu queria que ele te deixasse em paz por um tempo. Não queria que ele pensasse que você amoleceu.

Júlio apertou os olhos na direção de Ravena sem realmente olhar para ela.

— E por que — ele rosnou, pausando entre cada palavra — ele pensaria isso?

— Você deveria ter matado um deles há semanas — a ladra apagou o cigarro numa telha, concentrando os olhos na atividade para evitar o contato visual. — Com os problemas da dívida e todo o resto, os rapazes estão ansiosos. Eu estou ansiosa. Se alguém além de mim souber que você está atrasando o cronograma e colocando o plano em risco porque não quer matar alguém...

— Ah, é isso que estou fazendo? — Júlio levantou a voz. Ele finalmente olhou para Ravena, para o rosto pesaroso dela, e percebeu que não conseguia aguentar a visão por muito tempo. Seus olhos voltaram para o mar; sua mente tentou emular a calma dele. — E o que te faz pensar que você “sabe” de alguma coisa?

— Eu te conheço.

Ela conhecia mesmo.

Uma parte essencial do plano do Príncipe, talvez mais essencial que conseguir um sobrenome nobre e seduzir uma solteirona rica, dependia da morte de um dos quatro candidatos à única vaga disponível na Academia Imperial. Se executada corretamente para parecer um acidente e acontecesse antes da prova de admissão, a morte de um dos quatro abriria espaço para que um novo candidato ganhasse a chance de ingressar na Academia. Matar não era um problema, assim como não o era fazer um assassinato se parecer com um infortúnio do destino; o que bloqueava Júlio nessa parte do plano era não saber qual dos candidatos ia morrer.

Seus nomes eram Jéssica Formoso, Aleandro Miranda, Nathaniel Gonçalves e Paulo Firel. Júlio os vinha estudando há semanas, desde que os pregoeiros começaram a anunciar que eram eles os quatro candidatos escolhidos para o teste de admissão, tentando encontrar um motivo forte o bastante para justificar o fim da vida de um deles. Seria mais fácil se fosse apenas um candidato, se a situação fosse urgente o bastante para ativar o instinto de sobrevivência do Príncipe; mas com quatro, tudo no que ele conseguia pensar era na vida que ele estaria encerrando injustamente para alavancar a sua própria. Era um tipo estranho de remorso, e Júlio não era capaz de se livrar dele mesmo quando pensava nas pessoas que já tinha matado e nas que estava disposto a eliminar para conseguir seu objetivo.

Ravena tocou seu ombro. Ela podia ter dito alguma coisa, ou expandido o contato num abraço, mas não fez nada disso; ela também podia ter recuado ante o tremor que se espalhou pelo corpo de Júlio, mas sua mão permaneceu firme. Assim eles ficaram, paralisados ao vento como um par de gárgulas no telhado da Mansão, até a ladra retraiu o braço e se pôs de pé. Júlio olhou para ela finalmente, e em vez de pesar o que viu em seu rosto foi uma máscara insensível de seriedade.

— Você tem uma semana, meu Príncipe — ela disse. — Depois disso, eu decido por você.

Júlio ficou sozinho no telhado por muito tempo depois de Ravena ter partido. Sem o cheiro do cigarro para disfarçá-lo, o perfume de lady Grená envolveu suas narinas como uma fumaça sufocante.

[Você pode acompanhar essa história pelo Nyah! e pelo Wattpad]

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