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Resenha │ Cyberpunk: Edgerunners


Confie em mim quando digo que "mau gosto" é difícil de definir de uma forma que não te faça soar como um completo babaca elitista. Depois de uma pegadinha ou uma piada insensível isso pode até não ser verdade, uma vez que qualquer adulto pode dar voz à irritação se acordar com desenhos de pênis no rosto ou ouvir um colega de trabalho generalizando a nível racial uma ofensa, mas quando falamos de arte narrada a coisa fica mais complicada. Como você criticaria a orgia de sangue e morte em Game of Thrones sem soar como alguém chateado porque seu personagem favorito morreu de uma forma nojenta, humilhante ou sem sentido? Como consideraria filmes como Irreversível formas inferiores da Sétima Arte sem fazer parecer que ficou desconfortável com o peso dos temas abordados neles? "Moralista" talvez seja a pior ofensa para um crítico — um sinal de que a opinião dele não é tão imparcial quanto deveria ser — e, que mais não seja, faz com que ele pareça alguém que não suporta finais tristes. Mas e o oposto? E quando a opinião de alguém é positivamente afetada pelo qual miserável uma história é?

Cyberpunk: Edgerunners, o anime financiado por americanos, produzido no Japão e cuja história foi escrita por poloneses, me fez questionar essas e muitas outras coisas. Ele, assim como o protagonista David, caminha na linha fina entre a tragédia sem sentido calculada para causar choque e a exploração narrativamente justificada da condição humana em seus piores extremos. O roteiro equilibrista, para além disso, é também uma mistura perfeitamente dividida entre os estilos ocidental e oriental de storytelling: um dramalhão "realista" com personagens reais que ao mesmo tempo se envereda por clichês contemporâneos do gênero shounen povoados por personagens bidimensionais.

O bom-senso diria que algo tão desfocado não poderia realmente ser bom, mas se estamos sendo honestos eu preciso admitir que meu bom-senso parou de funcionar logo no primeiro episódio por causa dos visuais. Eu nunca tinha assistido um anime do Studio Trigger antes, então não posso falar do trabalho feito em Edgerunners como o padrão apresentado por ele, mas CARAMBA que anime bonito. Dez episódios podem ser pouca coisa num âmbito quantitativo; a densidade de qualitativa resultante, porém, para lá de compensa pela história curta. O orçamento dá aparências de ter sido muito bem balanceado entre os episódios, nunca deixando a qualidade cair em capítulos menos importantes da história. Longas cenas cheias de diálogo em que nada acontece estão presentes, é claro, mas mesmo nelas o senso estético do anime intercede por elas: cores incríveis, backgrounds com textura e o próprio teor dos diálogos servem para distrair da eventual economia de recursos para cenas onde eles são mais necessários. Enquanto os combates são meio bagunçados de se acompanhar e o traço ganhe flexibilidade para transmitir o impacto de certas cenas, o balanço geral de Edgerunners para o viciado em animação como eu é 10/10.


Em dado momento, entretanto, fui obrigado a limpar a baba do queixo e prestar atenção na história. Sei que comparação é o grande mal do momento cultural corrente (i.e. "tal coisa é que nem X para o gênero Y"), mas uma palavra ficou martelando na minha cabeça desde o terceiro episódio: Macbeth. Não que um anime produzido pra um serviço de streaming seja capaz de limpar poeira dos sapatos de Shakespeare em qualquer sentido, claro; a palavra vinha e voltava de meus pensamentos porque eu reconhecia o frio em meu estômago de quando conheci a história da Peça Escocesa pela primeira vez. Todos nós, espectadores/leitores, conhecemos esse frio. É a certeza de que nada de bom vai durar muito, e ninguém vai se dar bem no final. É o frio que surge quando a história repete a direção que está tomando vez após vez de formas sutis e não tão sutis, quando tragédias são praticamente soletradas pelo roteiro antes de acontecerem. É um frio de certeza, mas não aquela certeza sorridente de "Daí vai acontecer isso" e sim "Não, por que eles fariam isso com esse personagem depois de tudo que ele sofreu?"

Se não qualquer outra coisa, histórias são jogos de equilíbrio; dar e receber. Se um personagem sofre na vida, espera-se que ele receba alguma coisa: um momento de poder, vitória sobre seus inimigos, aprendizado acerca de uma verdade universal que dá sentido à dor cotidiana. Sinto que é por aí que uma história se envereda quando é de mau gosto — quando ela brinca com a ideia de que chegamos no fundo do poço da vida de alguém, e que as coisas vão melhorar a partir desse ponto. O mau gosto vem da incompetência barata de um escritor que não consegue dar um sentido para a própria história dentro de si mesma, então a torna uma pegadinha "irônica" para que o sentido dela exista no mundo real, como um "experimento". O bom gosto, em contrapartida, vem da insistência na tragédia até que ela se torne a linguagem através da qual a história é contada. Não há ironia no bom gosto, não há subversão de expectativas ou brincadeiras às custas da inteligência do leitor/espectador. Nenhuma história precisa de um final feliz para ser boa, mas toda história precisa de bom gosto para ser válida.


Eu diria que minha maior surpresa em Edgerunners foi perceber que ele é puro bom gosto. A mania contemporânea de "subverter expectativas" vem infectando muitas obras na cultura popular; maldito foi o dia em que alguém se sentiu inteligente por prometer uma coisa e entregar uma desconstrução de coisas em geral. Se o spin-off animado de Cyberpunk 2077 serve de termômetro, a epidemia está passando.

Cyberpunk: Edgerunners conta a história de David, um filho de mãe solteira que se sente sufocado pelo peso das expectativas colocadas sobre seus ombros. Quando um conjunto de implante cibernético capaz de dar super velocidade ao usuário vem parar na espinha dorsal de David, ele se vê catapultado para um submundo criminoso de violações virtuais, armas capazes de liquefazer crânios e um elenco de personagens especializados em diferentes modalidades de violência. A premissa inicial, apesar de parecer distante depois de seis episódios de tiroteio, sangue e órgãos expostos, nunca vai embora: a jornada que a acompanhamos é a de David tentando viver à altura das expectativas colocadas nele por outrem. É justamente aí que reside a natureza de seu romance com Lucy, uma netrunner (termo anglófono para pessoas capazes de projetarem sua consciência para o mundo virtual que a Netflix Brasil inexplicavelmente decidiu traduzir como "trilha-rede") cujo objetivo em vida é fugir do destino decidido para ela pela megacorporação para a qual ela foi vendida desde muito jovem.


Temas universais como a indecisão vocacional dos jovens são amplificados pelo universo cyberpunk, onde tudo é maior, mais cínico e proporcionalmente malicioso. A "cyberpsicose", um fenômeno particular a esse universo que é resultado da incapacidade humana de suportar o abuso de implantes cibernéticos no corpo, é utilizada para ilustrar o grosso dos arcos emocionais da história e consegue não parecer uma muleta para o storytelliing. É um mérito de Edgerunners conseguir extrair tanto da identidade visual, locações e lore do jogo em que é baseado e mesmo assim não parecer um comercial de dez episódios — embora eu tenha me sentido inclinado a jogar 2077 depois de assistir o anime. O roteiro consegue equilibrar perfeitamente a estranheza de um mundo tão diferente do nosso como o horror reconhecível das tragédias mais cotidianas dos correntes anos 20.

Essa palavra de novo. "Equilibrar".

Penso que a natureza multinacional de Edgerunners afetou a forma como o anime saiu. É possível sentir os pontos de choque entre os lados ocidental e oriental (que vão muito além de não querer uma loli no anime): os lugares em que decisões foram feitas para corrigir o curso da produção. A história de David e seu implante cibernético herdado de um cyberpsicopata soa muito parecida com a de qualquer protagonista de anime que herda poderes de uma entidade maligna e precisa lidar com a corrupção que esses poderes trazem, mas ao mesmo tempo o roteiro evita todos os clichês desse tipo de história para focar numa narrativa mais humana e intimista sobre as marcas deixadas por uma doença mental naqueles que perderam amigos para ela. Cada cena é um festival de equilibrismo, um toma lá dá cá criativo que surpreende, como todo o resto, por simplesmente funcionar. Eu percebi tarde demais que japonês nem era o idioma intencionado para o anime, e que a dublagem "certa" era a americana — uma confusão multicultural do tipo que só se encontra num universo cyberpunk.


No fim, a mistura funciona. As cenas de ação extremamente divertidas e inventivas servem como complemento da história dramática sobre um jovem torturado lutando contra a própria mente enquanto trilha um caminho sem-volta em direção a um destino terrível; os visuais exuberantes explorados por uma lente amadurecida de direção fotográfica servem de contrapeso para o subtexto emocional complexo de cenas que diálogo nenhum poderia transmitir com a mesma intensidade. Foco é um exemplo comum de modus operandi para se concluir objetivos com sucesso, mas Edgerunners é um argumento forte a favor de deixar o talento se espalhar por uma obra e esperar que cada aspecto dela se equilibre por conta própria.

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