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Bioshock – Sociopolítica For Dummies

 

Pra muita gente, Bioshock foi o primeiro (e provavelmente último) contato com Atlas Shrugged, o ensaio disfarçado de romance escrito por Ayn Rand em 1957. Eu mesmo só ouvi falar do livro quando vi, pela primeira vez, o jogo sendo discutido na internet – e sim, fui educado em escolas públicas por toda a vida. Mesmo na época, me pareceu ser impossível debater Bioshock sem os temas muito reais com que ele lidava: libertarianismo, ética capitalista, autonomia das massas trabalhadoras e livre arbítrio. Eu...

Não, não dá. Não consigo.

A pretensão de que esse texto será feito nos moldes de uma discussão acadêmica sobre tais temas deve ser deixada nos parágrafos iniciais, antes que o leitor fique muito, muito chateado ao descobrir que eu nunca tive qualquer interesse de ler os trabalhos de Ayn Rand. Se é pra ser honesto e perder a vergonha na cara, também admito que nunca me interesse por Bioshock por causa dos temas complexos, da história madura e do resto das coisas que uma pessoa precisa fingir gostar num jogo pra poder ser levada a sério: a premissa – uma cidade submersa em ruínas, construída numa mistura arquitetônica de art deco e  estética steampunk, da qual o jogador deve escapar enquanto troca tiros com cracudos superpoderosos e mutantes em roupas de mergulho do século dezoito – foi só do que precisei pra ficar interessado e, no fim, foi ela que elevou todos os sucessos do jogo para níveis icônicos dentro da indústria. Pra que se tenha uma ideia do tamanho da minha ignorância, eu só decidi experimentar Bioshock depois de me fascinar com jogos similares, ainda que lançados muito depois, do mesmo gênero: Deus Ex: Human Revolution, Dishonored e Prey (o bom, de 2017, não o outro).

Ainda assim, enquanto jogava Bioshock, não pude deixar de perceber que o faz especial vai muito mais profundo do que sua apresentação belíssima e suas mecânicas satisfatórias de tiro em primeira pessoa. Para falar sobre isso, vou precisar levar o leitor numa jornada (de relembrança, se você já zerou o jogo em questão) através da história de Bioshock e seus paralelos com o funcionamento geral do capitalismo pós-Revolução Industrial. Isso quer dizer SPOILERS. Se você quiser jogar antes de ler o resto do texto, fica aqui a recomendação: Bioshock é um excelente jogo de ação, narra uma história acima da média dentre seus pares e carrega uma mensagem atemporalmente relevante. Jogue, jogue muito. E depois volte aqui.

Atlas: ¯\_(ツ)_/¯

A cutscene de abertura nos apresenta a Jack, um protagonista tipicamente silencioso de jogos em primeira pessoa, sofrendo um acidente de avião. Sobrevivendo miraculosamente à queda, que calhou de acontecer sobre o oceano, Jack nada até a segurança de uma torre de farol e descobre dentro dela uma passagem para Rapture, a cidade subaquática construída por Andrew Ryan como um refúgio para homens e mulheres em busca de liberdade... Fiscal. Andrew explica, num videozinho muito prático que é tocado enquanto a cápsula submarina leva Jack para profundezas marítimas cada vez maiores, que a principal ideia por trás de Rapture é não precisar pagar impostos – e deixar que todas as pessoas sejam governadas pelo seu bom-senso, porque é claro que todas as pessoas são extremamente sensatas. Em outra ocasião, mais para a frente, Andrew afirma sua crença na Great Chain ("A Grande Corrente" em inglês), um fenômeno natural que ajuda a regular as forças sociais e econômicas antes que elas saiam de controle. Existe um paralelo no mundo real: A Mão Invisível do Mercado, observada por Adam Smith em seu livro homônimo lançado em 1759.

Jack é "resgatado" por Atlas (uau, quanta sutileza), um dos poucos sobreviventes em Rapture depois da destruição generalizada do que inicialmente parece ter sido um surto coletivo, e é através de conversas pelo rádio com esse personagem misterioso que nosso protagonista recebe dicas de como escapar daquele inferno submarino. Uma pergunta é feita sem palavras e permanece na mente do jogador pelo trecho seguinte de gameplay: o que aconteceu com essa cidade?

Seria fácil, e até certo ponto acertado, assumir que é tudo culpa da filosofia "tudo é permitido" de Andrew Ryan. As primeiras horas do jogo são passadas enfrentando splicers, pessoas cujo corpo e mente se deterioraram devido ao abuso de plasmids – habilidades sobre-humanas decorridas dos muitos experimentos genéticos permitidos no território de Rapture. O estado devastado da cidade, assim como os muitos cadáveres mutilados por todo o lugar, são obra dos splicers; seria lógico assumir que foram eles, produtos diretos do ideal de Ryan, deixaram tudo do jeito que está.

Exceto que não é bem assim.


O jogo não poupa esforços ao pintar a utopia das profundezas como um terreno fértil para os piores pesadelos que mãos humanas poderiam realizar. O primeiro chefão do jogo é um cirurgião plástico que, sem ninguém para regular seu trabalho, decidiu "refazer" os rostos de dúzias de mulheres, pacientes ou não. A falta de cuidado com o próximo fora do âmbito de lucro imediato é evidente nas "estações de cura", aparelhos capazes de curar o jogador se este dispor do dinheiro necessário. Little Sisters, crianças propositalmente infectadas com um parasita, patrulham as ruas para recuperar material genético dos mortos e reciclá-lo para o uso dos vivos. Big Daddies servem de segurança para essas crianças, monstros de carne e metal sem vontade própria, incapazes de interagir com o mundo quando não estão defendendo Little Sisters. Apesar de estar caindo aos pedaços no momento em que Jack chega, Rapture parece não ter sido muito melhor que isso em seus dias de glória.

A coisa muda um pouco de figura quando, já no segundo ato de sua história, Bioshock nos apresenta Frank Fontaine. Fontaine não aparece nas conversas de rádio como é o caso da maior parte do elenco do jogo, pelo menos não inicialmente: a influência dele é sentida na exploração do ambiente. Ouvimos gravações de áudio (o que era storytelling aceitável para videogames em 2007) sobre como Fontaine liderou o sentimento de descontentamento dos trabalhadores braçais de Rapture, servindo como porta-voz das necessidades dos mais pobres; mais tarde, outras gravações revelam como essa tentativa de reforma trabalhista acabou com execuções ordenadas por Andrew Ryan e a criação de uma sociedade criminosa que se opôs militarmente ao regime vigente em Rapture.

Em outra história, Fontaine seria nosso herói. Conforme Bioshock avança, porém, descobrimos que ele participava do tráfico de Bíblias – estritamente proibido em Rapture, onde religião é vista como uma forma o dinheiro suado dos trabalhadores – e que suas ações pareciam não visar o melhor para o povo da cidade, e sim para minar a autoridade de Ryan. Enquanto fingia ser um homem do povo e para o povo, Fontaine também estava envolvido em diversos investimentos pela cidade e, quebrando a figurativa grande corrente, adquiriu um monopólio nas áreas de transporte e abastecimento que, num governo democrático, teria sua influência regulada por representantes eleitos.  Colocando o dinheiro acumulado para trabalhar, Fontaine cria condomínios públicos para servirem de morada para os pobres, assim como implementa serviços gratuitos de saúde – ações benignas num contexto isolado, mas com o sentido declarado de desestabilizar a economia e conquistar a lealdade das massas. Tenho certeza de que não preciso estabelecer paralelos com o mundo real aqui.


Acuado ideológica e financeiramente, Andrew Ryan é obrigado a tomar medidas drásticas para conter rebeliões, assumindo a mesma atitude autoritária que os moradores de Rapture estavam tentando evitar no mundo da superfície, e isso aumenta o descontentamento geral até que uma guerra civil seja declarada por ambos os lados. É daí que vem o estado de caos e destruição que serviu de boas-vindas para Jack, splicers sendo uma consequência natural da falta de infraestrutura resultante.

Mais coisas acontecem depois disso, incluindo a grande revelação de que Atlas é ninguém menos que Fontaine e que Jack é um clone criado para destruir o fundador de Rapture (!!!), mas nada disso é realmente importante para os propósitos deste texto. Se você já jogou, não precisa que eu lembre do quão boas as horas finais de Bioshock são; se você não jogou, considere misericordiosa a decisão de não nos aprofundarmos na história além disso. O que me chamou a atenção em Bioshock foi o modo como a degradação de Rapture foi justificada pelo roteiro, e é disso que vamos falar agora.

Forças de Mercado

Toda obra de arte é feita a partir e através de uma ideologia (não acredita? Vá assistir qualquer documentário do Slavoj Zizek), de modo que a representação tão expressiva de ideais libertários na figura de Andrew Ryan me fez pensar que Bioshock estava pregando contra isso. A substituição de Ryan por Fontaine perto do fim da história, porém, me deixou na dúvida – e não só sobre qual era o alinhamento político dos realizadores do jogo, mas também sobre quem, de fato, foi o responsável por destruir o sonho que Rapture já tinha sido.

"Um homem escolhe, um escravo obedece."

Em A República, Platão define tirania como produto de qualquer filosofia política que pregue igualdade: Andrew Ryan e sua grande corrente seriam, assim, os culpados e verdadeiros vilões da história. Foi por causa da ideia de que ninguém deveria ser regulado, de que ninguém estava acima de ninguém, que pessoas como Fontaine puderam se aproveitar do sistema e construir as bases para a revolta que, por fim, reduziu Rapture a ruínas. Mas dizer isso não seria retirar a culpa do próprio Fontaine e suas intenções voltadas para o lucro desenfreado? Não se pode culpar um fabricante de facas pela morte de alguém que foi esfaqueado; a ferramenta que possibilitou as ações de Fontaine, i.e. The Great Chain, não pode ser responsabilizada pelo mal que ele cometeu. No fim, a mensagem de Bioshock é uma crítica ao capitalismo que entende, em si mesma, a necessidade dele. Cabe ao jogador, que sem dúvida já tem suas próprias opiniões sobre o assunto, decidir que lado do capitalismo o jogo culpa pelo que aconteceu: a ideologia ou a prática.

Citar A República assim, do nada, não foi uma carteirada gratuita. A sensação que tive lendo a mais conhecida obra de Platão foi muito parecida, embora em maior escala, da que tive jogando Bioshock: a estranha clareza advinda de perceber na ilustração diante de mim um exemplo dos motivos pelos quais o mundo é o que é. Os detalhes estão todos lá: um mercado que dá oportunidades a todos, a desigualdade social que advém dessa livre oportunidade e o abutre que se aproveita do sofrimento dos pobres para usá-los em sua própria busca por poder e dinheiro. Bioshock ilustra isso com maestria. A exploração das ruas devastadas de Rapture representa, entre outras coisas, os estágios gradativos da erosão social ocasionada por desequilíbrio econômico e social.

Muitos são os méritos de Bioshock como entretenimento interativo, e foi uma surpresa boa para mim jogar um clássico que realmente merece seu lugar na cultura pop – trilha sonora 10/10, visuais belíssimos, mecânicas de combate que se sustentam até mesmo num controle em vez de mouse. Pessoalmente, porém, o jogo fica em minha memória por ter feito com que eu me lembrasse de livros de filosofia que li no colegial. Acho que isso diz mais sobre mim do que diz sobre ele.

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