Não foi por maldade que o Príncipe guardou segredo a respeito das alterações feitas na Mansão durante a reforma; havia, no entender dele, um acordo silencioso com seu pai adotivo que os impedia de discutir abertamente os negócios escusos de Júlio. A construção da masmorra subterrânea, sucedida durante o reforço dos alicerces da antiga casa, era parte de tais negócios e por isso o Príncipe nunca tocara no assunto com lorde Leonardo. Que mais não fosse, se o patriarca da Família Saturnino não era capaz de perceber o que se fazia com sua propriedade, talvez ele mesmo não quisesse saber.
As
vantagens de se ter uma masmorra particular eram muitas para alguém na linha de
negócios do Príncipe, mas havia uma desvantagem considerável dada à sua
condição secreta. Foi só muito tempo depois de todos os muitos nobres na Mansão
terem ido dormir, e depois disso ainda satisfazer as necessidades afiadas de
lady Grená, que Júlio pode dirigir-se à porta oculta na lareira de uma das salas
de estar e através dela descer por um elevador de serviço até os corredores
escuros e úmidos da prisão subterrânea.
O
Príncipe não precisava impressionar convidados com a arquitetura e decoração
das masmorras, logo, o chão era terra batida, as paredes eram feitas na mesma
rocha sólida das vigas de sustentação e a única luz que não vinha das esparsas
tochas era refletida pelas barras de aço recém-forjado das celas. Todas as
alcovas reservadas para futuros prisioneiros estavam desocupadas à exceção de
uma, a mais distante da porta e menos iluminada pelas tochas. À postos no
corredor em que essa cela estava, um dos homens de Edmundo fazia rondas
enquanto assoviava uma música obscena. O soldado carregava uma lanterna a óleo
presa ao cinto, vestia-se nos matizes de cinza-escuro da Família Nebrim e bateu
continência quando viu o Príncipe se aproximar. Este devolveu o gesto e pediu
para que o guarda lhe acompanhasse.
—
Vilipe, certo? — Júlio lhe perguntou, calculando a voz para que saísse naquele
timbre firme e conciso com o qual soldados se davam melhor. — Desculpe se me enganei.
—
É Vilipe mesmo, senhor — o guarda soou satisfeito com o reconhecimento.
—
E como vai o noivado, Vilipe? — O Príncipe diminuiu o ritmo dos passos. Estando
a cinco celas de distância do prisioneiro, decidiu que não restava muito a se
adiantar, e lembrou-se que uma conversa com os subalternos nunca era
desperdício de saliva. — O pai da moça continua dando problema?
—
Não, senhor — Vilipe deu uma risada constrangida. — Ficou mansinho depois da
conversa que o senhor teve com ele, senhor. O noivado vai às mil maravilhas.
Obrigado por perguntar, senhor.
—
Fico feliz em saber.
Edmundo
podia ter uma dívida eterna para com o Príncipe, mas o mesmo não era verdade
para os soldados que serviam sob o estandarte esfarrapado da Família Nebrim.
Eram homens brutos, forjados pelos anos de perseguição e exílio até toda a
gentileza dar lugar à praticidade, e Júlio se viu obrigado conquistá-los com o
mesmo nível de afinco com que tinha conquistado o general deles. Pequenas gentilezas
como convencer o comerciante de uma cidade vizinha a casar sua filha com um
cavaleiro sem sobrenome podiam ser delegadas a outrem, mas o Príncipe atendeu a
elas em pessoa e dando o máximo de si. O resultado estava na forma diligente
com que Vilipe falava com o menino que seguia à sua frente; jovem o suficiente
para parecer uma criança e sem nada da imposição física de Edmundo, Júlio ainda
assim cumpria o papel de líder militar na cena que se desenrolava no mais
distante corredor das masmorras secretas da Mansão Saturnino.
Tomás,
o camareiro, jazia encolhido no canto oposto às barras de sua cela. Ele parecia
dormir sentado, braços envolvendo os joelhos, e o que parecia ser um pesadelo
espalhava tremores por seu corpo e expressões preocupadas em seu rosto inconsciente.
Ainda vestia as roupas com que fora apanhado três dias antes, as mesmas que
rasgara pulando o muro sudeste da mansão e que sujara ao se esconder debaixo de
uma carruagem repleta de estrume; o cabelo bagunçado pela surra que recebera
dos soldados que o encontraram não sofrera qualquer tentativa de arrumação.
Três dias inteiros sem comida e com o mínimo possível de água tinham ressecado
suas feições, e o Príncipe sentia que essa versão suja, ferida, maltrapilha e
esfomeada de Tomás combinava muito mais com o homem que havia no interior.
—
Como ele está? — Júlio perguntou, batendo com sua lanterna nas barras para
tentar acordar o prisioneiro. — Gaspar passou por aqui?
—
Passou, sim, senhor — Vilipe postou-se na parede oposta. — O memorizador disse
que o meliante vai precisar de comida logo, mas que ainda está... Qual foi a
palavra...?
—
Estável.
—
Isso. — O soldado pigarreou. — No mais, sem novidades. Ele só ficou sentado aí
esse tempo todo. Tentei conversar com ele como o senhor pediu, mas ele não quis
falar. Os rapazes deram uma coça nele ontem pra ver se ele reagia, mas depois
que terminaram ele simplesmente voltou a se sentar.
—
Que... Inusitado.
O
Príncipe examinou Tomás por entre as barras, tentando encontrar na postura
retraída e trêmula dele um indicador de resistência suficiente para aguentar a
fome e duas surras sem se dispor a cooperar. Ele se virou para Vilipe, dando de
ombros, e disse:
—
Parece que não vamos conseguir nada com ele. Mande chamar a guarda capitalense.
Ele vai voltar para o Distrito dos Grilhões.
Vilipe
já estava de saída quando um grito o interrompeu – um grito assombroso, meio
uivo e meio choro, que ecoou nos corredores da masmorra como um coral de almas
penadas. Quando o soldado voltou-se na direção do som, sua mão instintivamente
foi à espada. Júlio, preso pelo pescoço às grades devido ao antebraço de Tomás
asfixiando-o, gesticulou para que Vilipe não desembainhasse a lâmina.
—
É isso que ele quer — o Príncipe arquejou, tentando fazer sua voz sair o mais
civilizadamente possível através da compressão em sua traqueia. — Quer que você
o mate antes de... — Tossiu. — Que a guarda venha. Fique calmo, Vilipe. Se ele
me matar, nada vai te impedir de lidar com ele.
—
Senhor — o soldado disse, a simples palavra expressando níveis diferentes de
ansiedade e raiva.
Atrás
de Júlio, respirando em seu cangote, Tomás soltou outro uivo demente. Era
surpreendente que ainda tivesse tanta força dentro de si depois do tratamento
que o Príncipe lhe dera.
—
Senhor — Vilipe repetiu, a suave inflexão de uma pergunta em seu tom de voz. Os
soldados da Família Nebrim eram mais que capazes de sacar uma espada e cravá-la
num bandido mais rápido do que este levaria para matar um refém, e a postura preparada
de Vilipe telegrafava o golpe que ele iria usar para libertar Júlio. — É só dar
a ordem, senhor.
—
Já dei — Júlio sentia-se mais leve pela falta de ar. — Vá buscar a guarda.
Vilipe
uniu as sobrancelhas, o impulso de obedecer chocando-se com o de proteger.
Atrás das grades, Tomás voltou a gritar; dessa vez, mais choro do que uivo.
—
Eu vou matar esse moleque — ele vociferou.
—
Quanto desespero. O que houve com todo aquele silêncio dignificado? — O
Príncipe achou graça. — Você realmente achou que poderia bancar o coitadinho,
não achou? Que eu ia...
Júlio
pausou, surpreendido pela escuridão que afunilou suas vistas. Ele sentiu-se
debater involuntariamente, sentiu a garganta fechar. A leveza espalhou-se por
seu corpo, dolorida. Vilipe, finalmente decidindo-se, deu as costas ao
assassinato em curso e fez que ia sair pelo corredor. Quase no mesmo momento,
Tomás soltou Júlio e implorou:
—
Não! Pelo amor, não vá!
O
Príncipe despencou de joelhos no chão, um sorriso quase inconsciente
espalhando-se por seu rosto enquanto sua mente quase desacordada registrava que
estava certa. Ele sentiu o corpo erguido por braços fortes, ouviu uma voz
distante chamando-o pelo que pareceu ser um longo sonho desconecto de tudo e
todos, e então se viu desperto e em pé com um dos braços envolvendo os ombros
de Vilipe. A voz do soldado vinha em ondas, e parecia filtrada através de uma
grossa parede. Ele ofereceu a Júlio um pouco da água em seu cantil, e o
Príncipe aceitou gesticulando para que um pouco do líquido fosse espargido em
seu rosto.
—
Me perdoe, senhor — Vilipe repetia. — Se eu tivesse obedecido, o senhor não
teria desmaiado. Me perdoe, me perdoe. Se eu tivesse obedecido...
Um
gesto do Príncipe o calou. Júlio sacudiu a cabeça, firmando os pés como se
nunca tivesse ficado em pé por conta própria antes, e sentiu a visão clarear.
—
Está tudo bem — declarou, depois de um pigarro que quase desenvolveu-se numa
crise de tosse. — Conseguimos o que queríamos, não? Ele falou.
Tomás
olhava do jovem Saturnino adotado para o menos jovem carcereiro aturdido. Sua
boca estava entreaberta num grito mudo, e seus olhos estavam esbugalhados como
os de um louco.
—
O que você quer? — Ele perguntou, desespero franco em sua voz.
—
Quero que trabalhe pra mim.
O
silêncio resultante pareceu durar horas. Vilipe, depois de ter certeza que
Júlio era capaz de se sustentar sozinho, afastou-se com uma postura que
traduzia sua vergonha visualmente e postou-se a uma distância segura do
camareiro. O Príncipe esperou, paciente, até Tomás finalmente dizer:
—
Por isso me deixou com fome nesse buraco? Isso é você cortejando funcionários
em potencial?
—
Não; isso foi por ter atrapalhado meus planos, desviado recursos da Família
para contratar prostitutas de luxo e mentido para meu pai — Júlio sorriu, contendo
outro acesso de tosse. — Vilipe aqui não ter fatiado você em dois por ter
ousado encostar em mim com essas suas mãos sujas de estrume? Isso fui eu cortejando.
Tomás
examinou o soldado de esguelha, ligeiramente assustado, então voltou sua
atenção para o nobre adotado à sua frente. O camareiro apoiou os cotovelos nas
barras horizontais da grade de sua cela e descansou o corpo nessa posição.
Apesar da fraqueza aparente e do terror expressado pouco tempo antes, a pose
parecia apropriada para alguém prestes a negociar de igual para igual.
—
Você sabe sobre o Distrito dos Grilhões — ele disse, meio perguntando. Júlio
acenou positivamente com a cabeça. O camareiro prosseguiu: — O que mais sabe
sobre mim?
—
Tudo.
Tomás,
o camareiro, nem sempre se chamou assim ou trabalhou no ramo servil. Ele nasceu
Osvaldo Cementis, o último nascido na geração mais recente de nobres da
influente família de artesões, e por ser o mais novo de dezesseis irmãos foi
obrigado a procurar fora das oportunidades familiares em sua busca por dinheiro
– ignorando, obviamente, a opção de simplesmente ficar em casa vivendo seus
dias no melhor estilo dandy. Ele alistou-se
no exército imperial aos dezesseis anos, de onde desertou três meses depois.
Sem poder voltar para casa devido à desgraça que trouxe para seu sobrenome,
Osvaldo mudou-se para o interior e usou o pouco que retivera da educação que
recebera ao longo da infância e adolescência para se passar por um sem-número
de profissões: médico, advogado, armadilheiro, coletor de impostos e, na performance
que o levou para a prisão, coveiro. Ele não foi condenado ao Distrito dos
Grilhões por fingir ser um coveiro, veja bem, uma vez que a mentira o
condenaria à morte; um membro da família de um dos mortos enterrados por ele o
denunciou por incompetência ao descobrir que o defunto, que tinha sido
depositado numa cova rasa, fora levado por uma enchente até o meio da cidade. O
exame do morto, e também da tal cova, revelou que muitos dos pertences com os
quais ele tinha sido enterrado tinham sumido misteriosamente; o fenômeno
repetia-se com todos os cadáveres entregues aos cuidados do coveiro Osvaldo,
que na época tinha vinte e oito anos.
Uma
vez no Distrito dos Grilhões, ele fez todo o possível para conseguir sair. Sua
estadia durou catorze anos, um período extremamente curto em comparação com as
prisões perpétuas dos demais condenados, e deve seu término à estupidez de um
guarda chamado Tomás. Ele se afeiçoou pelo prisioneiro em questão, e contou o
suficiente de sua vida pessoal para que Osvaldo pudesse se passar por ele numa
noite chuvosa demais para que a guarnição pudesse discernir as feições de quem
entrava e saía. Procurado por toda a capital como o único fugitivo do Distrito
dos Grilhões nos últimos cinquenta anos, Osvaldo mudou de nome e deixou crescer
o bigode. Tomás, o mordomo, foi contratado pela Família Melo cinco anos atrás –
e teria sido demitido seis meses depois por ter sido apanhado cheirando os pés
das filhas do dono da casa enquanto elas dormiam. Por coincidência, conseguiu
fugir de uma nova estada na prisão se passando por membro da comitiva da
Família Saturnino, que estava de visita na Mansão Melo. Misturar-se em meio à
criadagem dos Saturnino não foi difícil para alguém tão versado na arte de
fingir ser. Assumir o lugar do camareiro favorito de lorde Leonardo foi mais
fácil ainda: descendentes de despaginados somem com uma frequência
inacreditável assim que alguém mal-intencionado conta à guarda capitalense
sobre eles.
—
Isso foi frio, cara — Júlio comentou, tomando fôlego depois da longa exposição.
— Eu tenho amigos que são descendentes de despaginados, sabia?
Por
um longo momento, Tomás não disse nada. Sua pose confiante de negociador deu
lugar a uma versão cada vez mais alquebrada de si mesma até que o camareiro
estivesse de joelhos no chão e a posição de seus cotovelos nas grades fizesse
parecer que ele estava suplicando. Por fim, quase sem conseguir controlar o
choro em sua voz, ele ergueu os olhos marejados na direção do Príncipe e
declarou:
—
Qualquer coisa. Eu faço qualquer coisa.
Existe
algo extremamente poderoso na verdade, especialmente quando devolvida à vida de
alguém que viveu na mentira por tantos anos. Naquela madrugada o camareiro foi
verdadeiro pela primeira vez desde que olhara nos olhos do pai e o amaldiçoara
por tê-lo feito nascer por último. Tomás, que tinha mais de Osvaldo em si a
cada lembrança vergonhosa que voltava de seu passado distante, jurou lealdade
ao Príncipe e se comprometeu a integrar seus talentos à sociedade secreta de
que Ravena Lupin também fazia parte.
Ela
detestava depender de Afonso para receber informações; primeiro porque o espião
gordo se recusava a entregar o que era pedido através de intermediários, e
segundo porque era raro que ele decidisse que um serviço era importante o
suficiente para que precisasse ser feito do lado de fora de seu esconderijo. Na
verdade, o que ela detestava mesmo era ter de ir visitá-lo. Não, não. Na
verdade ela detestava Afonso Morande.
O
Cassino Prazcarnal ficava na divisa entre os Distritos do Porto e da Coroa, e como
tal estava sempre abarrotado com os piores tipos de ambos os lados da fronteira
invisível que separava os ricos por herança dos ricos por trabalho duro. O lugar
em si era muito bonito, até limpo para os padrões de um estabelecimento do
tipo, e Ravena não tinha qualquer objeção à decoração em tons de rubi e
esmeralda que ia das luzes até o veludo dos assentos. A música era boa, a
bebida era das melhores e o grau de civilidade imposto pelos mercenários bem
treinados que serviam de segurança era tão alto que uma mulher desacompanhada
poderia passar uma noite inteira no estabelecimento sem acabar violada ou morta
– mas os fregueses, ah, os fregueses. Era difícil para Ravena cobrir o percurso
entre as grandes portas de entrada do cassino e o escritório de Afonso, que
ficava no terceiro andar, sem esbarrar numa ou noutra pessoa que ela já tivesse
roubado.
Eles
não sabiam quem ela era, obviamente, mas isso não diminuía o nervosismo de
Ravena. Cabelos ruivos, cabelos tão ruivos quanto os dela, não eram fáceis de
esquecer. A primeira lição que seu pai lhe ensinou fora não deixar para trás o
tipo de pista que um investigador perspicaz poderia correlacionar com outros
casos de roubo, e cabelo vermelho era a última coisa que Ravena queria na mente
de suas vítimas na hora de dar um depoimento. Quantos deles já não tinham
reparado nela em suas visitas a Afonso? Quantas pessoas que a apanharam no ato
tinham percebido mechas vermelhas por baixo de sua touca de trabalho? Aquelas
eram perguntas para fazer suar até o mais frio dos ladrões de mansão. Enquanto
abria caminho pela multidão de casais dançando no salão principal, Ravena
pensou em John Holmes com um calafrio.
Tudo
aquilo poderia ser evitado se Afonso confiasse em seus empregados. O balofo
poderia separar um ou dois dos órfãos que recruta pelas ruas e então treiná-los
para que pudessem carregar informações confidenciais sem serem tentados a vendê-las
para a concorrência, mas aparentemente o esforço era maior do que o incômodo
que ele forçava Ravena a passar sempre que eles precisavam trabalhar juntos. E,
bom, trabalhar junto com ele já seria ruim o bastante sem a necessidade de
passar pelo Prazcarnal. Ravena amaldiçoou Aragão, seu intermediário traiçoeiro
que morrera pelas mãos dos tartarianos, pelo que imaginava ser a centésima vez.
Fosse ele mais esperto, teria sobrevivido para fazer aquelas visitas ao cassino
no lugar dela. Fosse ele mais... A ladra não queria admitir, mas perder Aragão
tinha sido mais doloroso do que descobrir que ele planejava vendê-la para
aqueles selvagens estrangeiros.
Naquela
noite, era um dos mercenários bonitinhos fazendo guarda em frente ao escritório
de Afonso. Ravena sorriu quando ele piscou para ela ao abrir a porta, e chegou
a perder um momento considerando a possibilidade antes de a visão do Príncipe
coberto de mordidas e arranhões invadir sua mente. O mercenário queixudo e de
olhos verdes foi silenciosamente rejeitado; fechou a porta com uma expressão
confusa, como se não soubesse da existência de mulheres capazes de resistir a
ele.
O interior do escritório era como uma versão
mais opulenta do cassino: vermelho e verde para todo lado, cortinas
translúcidas de ambas as cores recobrindo as paredes e captando o contínuo
jorrar de luzes que vinha do painel de vidro que dava vista para o salão
central três andares abaixo. A decoração lembrava a Ravena das histórias que
seu pai contava sobre dragões e suas cavernas: uma miríade de objetos preciosos
amontoados em pilhas sobre tampos de mesas, almofadas e tapetes. Não parecia
haver método na organização deles, se é que havia alguma. Anéis e colares
figuravam em meio a jogos de talheres e louças, vestidos antigos e quadros
empilhados devido à falta de espaço para serem pendurados nas paredes.
No
centro do caos, um mascarado Afonso espreguiçava-se em sua poltrona e ouvia,
interessado, cada sussurro que os órfãos faziam fila para lhe contar. Os jovens
eram supervisionados por um par de mercenários, só um deles bonitinho, e eram
guiados por eles até um quarto dos fundos onde o memorizador a serviço de
Afonso os fazia esquecer o que tinham contado ao patrão antes de serem pagos.
Ravena aproximou-se pelo lado oposto ao da fila, fazendo questão que seu rosto
expressasse irritação:
—
E então?
Por
entre as frestas que serviam de olhos para a máscara verde e vermelha, Afonso
apertou os olhinhos de porco como se a visão da ladra lhe fosse reciprocamente
desagradável. Ele fez soar uma risadinha sem humor por baixo da cerâmica para
que ela aproximasse a orelha dos lábios descobertos dele.
O
incidente da língua em seu ouvido, assim como o soco resultante, tinha
acontecido há tempo demais para que uma pessoa razoável ainda se sentisse
hesitante em obedecer; Ravena sabia ser muito pouco razoável. Ela se aproximou
com a cautela de alguém que estica a mão na direção de uma serpente, abaixou-se
lentamente e posicionou a orelha numa distância que julgava segura. Afonso
sussurrou a localização dos alvos naquela sua voz impossivelmente baixa e clara
ao mesmo tempo, depois avisou onde e a que horas os rapazes responsáveis pelo
transporte apareceriam. Ravena torceu os lábios inconscientemente, seu cérebro
de ladra fazendo cálculos para considerar quanto tempo a coisa toda levaria, e
acabou percebendo que Afonso escolhera o horário do encontro com precisão. Ela,
é claro, não o elogiou em voz alta.
Era
preciso cruzar quase três quadras para que o som da música advinda do Cassino
Prazcarnal deixasse de ser ouvida, e Ravena andou muito mais que isso até
chegar num de seus muitos esconderijos seguros. Esse ficava ao oeste do
Distrito da Coroa, no sótão de uma mansão abandonada, e a janela dava vista
para a figura majestosa feita pela Mansão Saturnino depois das reformas. Ravena
trocou de roupa olhando para a velha casa, pensando na indecisão do Príncipe, e
voltou para a rua em seu melhor vestido preto justo ao redor dos seios. Usando
uma peruca loura para esconder o cabelo e um grosso leque para disfarçar as
feições, a ladra seguiu para a direção apontada por Afonso e encontrou, no
Distrito do Trabalho, uma taberna.
Era
o tipo de lugar em que uma moça com os seios praticamente saltando para fora do
decote poderia se enturmar – prostitutas em diferentes estágios de revelação
dérmica espalhavam-se por todo o estabelecimento. Ravena sentou-se num canto
próximo ao piano que era espremido pelas mãos grosseiras de um marinheiro,
cruzou as pernas para levantar um pouco a saia e, por sobre o leque que ia e
vinha, examinou seus arredores. Encontrou os alvos no bar: dois rapazes vestidos
como estivadores que não faziam qualquer tentativa para esconder as peixeiras
largas e afiadas presas à cintura. Ravena os reconheceu pelo amarelo
característico da gangue dos Lobos do Mar, que um usava no lenço em volta do
pescoço e o outro no cinto.
Ela
se aproximou deles devagar. Seu pai a havia ensinado técnicas para o
comportamento do ladrão em público, mas fazia muito tempo desde a morte do
velho gatuno e Ravena havia se especializado em invadir lugares a despeito de
suas outras habilidades. Era uma felicidade, então, que seu decote tivesse
atraído a atenção do rapaz com o lenço e que ele a chamasse para tomar uma
bebida. Ravena aceitou, afetando a estupidez clássica das prostitutas de baixo
calão, e depois do segundo trago de pinga ela alterou sua performance para
incluir os efeitos esperados da bebida numa mulher sem estômago para o álcool.
O alvo com o lenço em seu pescoço começou a beijá-la assim que Ravena fingiu
tropeçar nos próprios calcanhares, e a ladra se entregou às carícias bruscas do
estivador até reunir coragem para agarrar as intimidades do amigo dele. Houve
um momento de indecisão entre os três, mas ele durou pouco. Os rapazes levaram
Ravena para o andar de cima, onde ficavam os quartos, e ela escolheu o lugar
onde eles passariam sua última noite.
Esconder
a faca com formato de garra de lobo no corpete do vestido era sempre uma boa
decisão. Enquanto eles se despiam entre beijos, amassos e carícias, Ravena
tirou a lâmina do esconderijo sem que eles percebessem e a deslizou pela
jugular do rapaz de cinto amarelo tão rápido que quando o do lenço viu o sangue
ele próprio já estava com a faca encravada em seu pescoço. O vestido da ladra,
caído ao chão entre os rapazes agonizantes, ganhou tons escarlates. A música no
andar de baixo, assim como os gemidos e risadas nos quartos vizinhos, abafou o
gorgolejar em que se transformaram os pedidos de socorro. Ravena observou a
morte chegar e ir embora num lampejo de agonia nos olhos de seus alvos.
Ela
pegou a peixeira do rapaz com o lenço amarelo e a usou para decapitar tanto ele
quanto o amigo. Arfante com o esforço e com as mãos completamente sujas de
sangue, a ladra tornou a usar a lâmina para eviscerar o rapaz do cinto amarelo.
Mesmo acostumada ao cheiro de tripas ainda quentes, ela precisou fazer uma
pausa para vomitar pela janela do quarto antes de passar para o rapaz do lenço.
Ravena decepou as mãos dos cadáveres, assim como os pés, e por fim removeu
deles as genitais. Quando terminou, lembrou-se da exatidão com que Afonso tinha
calculado o tempo e conferiu no relógio que ele estava correto em estipular o
horário do encontro para as três e vinte da madrugada – eram três e quinze.
Cinco
minutos eram tempo suficiente para Ravena limpar o grosso do sangue e criar uma
camisola improvisada com os lençóis da cama. Quando a carruagem da equipe de
limpeza chegou no terreno baldio vizinho à taverna, ela abriu ambos os lados da
janela e atirou através dela os pedaços dos cadáveres desmembrados. O som da
carne batendo na caçamba da carruagem ecoou alto na noite, mas Ravena sabia que
ninguém lhe daria muita atenção e, mesmo que estivesse errada, alguém curioso
para saber sua origem precisaria arrodear o prédio da taberna; havia sido por
isso, afinal, que ela escolhera aquele quarto.
O
condutor da carruagem acenou com um sorriso macabro ao estender sobre os
pedaços humanos um pedaço de lona e então partiu pelo terreno baldio até a rua
vizinha, sumindo na névoa invernal. Ravena saiu pela janela, fechando-a por
fora, e então escalou até o telhado da taberna. Ela saltou dele para o
seguinte, e repetiu a transição até chegar num esconderijo próximo.
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