Jason
não chegou a entrar completamente em casa quando o corpo cedeu sob peso de seus
tormentos.
Suas
pernas falharam com um de seus pés ainda do lado de fora, o capacete
recém-removido em sua mão esquerda, e ele sentou-se no parapeito da janela por
onde entrara sem ligar para a probabilidade de alguém ver o Capuz Vermelho
desmascarado com a perna pra fora do apartamento de Jason Todd. Largando o
capacete no chão com o baque alto – a coisa era surpreendentemente pesada –,
ele deixou que o ar noturno tingido de esgoto e lixo passasse por seu rosto
numa brisa quase fria. O silêncio de fora refletia-se dentro: Jason não pensava
em nada, não sentia nada, não existia no interior de sua mente. Havia apenas ele.
Bruce
nunca sorria quando estava fantasiado, mas ele chegou muito perto disso quando
confirmou que o palhaço tinha atirado na Arlequina para salvar Dick. Meu Deus, Jason pensou. As três pessoas que mais detesto no mundo
envolvidas no motivo da felicidade do meu pai. Ele teve de se conter para
não surtar ali mesmo, no túnel arruinado pela explosão e por Solomon Grundy, e
terminar o que tinha começado logo depois de fugir da Liga dos Assassinos. Teve
de fingir alívio por Grundy não ter deixando Dick aleijado, fingir controle
enquanto a polícia mais corrupta do mundo levava o palhaço embora, fingir que
não se ressentia por Bruce ignorar completamente o que tudo aquilo significava
para seu segundo filho adotivo. Houve uma época, muito tempo atrás, em que
Jason teria dado tudo para ver Bruce daquele jeito: leve, quase sorridente,
esperançoso, orgulhoso do próprio trabalho. Naquela noite, o bom-humor dele era
como sal numa ferida que se recusava a fechar. Como uma piada interna na qual
toda a Gotham tomava parte.
Jason
impulsionou o resto de si para dentro com um suspiro entrecortado e fechou a
janela com força suficiente para criar uma teia de rachaduras no vidro.
Inconscientemente influenciado pela rotina, ele começou a se despir pelas luvas
quando se deu conta de que não seria capaz de levar uma noite comum depois do
acontecido. Ainda de uniforme, Jason se dirigiu ao armário da cozinha e usou
seus dedos nus para arrancar o lacre de uma garrafa de uísque que Alfred tinha
lhe dado de presente no último Natal. O presente, recebido às escondidas porque
Bruce jamais aprovaria um de seus aprendizes ingerindo álcool, provavelmente
teria ficado sem uso se Jason não estivesse tão certo de que estava prestes a
fazer uma besteira. Ele bebeu direto do gargalo, sufocando e tossindo entre
goles, e sentiu um prazer sombrio quando os efeitos da bebida turvaram seus
sentidos aperfeiçoados. Ele poderia pegar uma briga com uma pessoa normal sem
medo de deixá-la aleijada e, rindo sozinho com uísque escorrendo pelo queixo,
teve vontade de fazê-lo.
Ligando
o aparelho de som na sala no máximo, torcendo para incomodar os apartamentos
vizinhos o suficiente para que alguém viesse reclamar, Jason pensou nele. Era
difícil fazê-lo sem reviver a dor das pancadas e renovar o medo projetado por
aqueles olhos verdes, mas Jason insistiu no pensamento até que o uísque amortecesse
a sensação absoluta de terror advinda daquelas lembranças. Ele pensou no
palhaço, pensou na escolta armada que o protegia levando-o a seu destino: uma
clínica secreta fora da cidade onde alguns dos melhores cirurgiões do mundo,
todos pagos por Bruce, transformariam a máscara de loucura e ódio dele num
rosto que Jason não seria capaz de reconhecer na rua. Pensou em que nome
escolheriam para ele, que profissão lhe dariam. Deixariam que ele ficasse perto
de crianças, ou o forçariam a bater de porta em porta para avisar que era um
homicida maníaco registrado? Não, claro que não. Ninguém ficaria sabendo o novo
nome dele, o novo rosto. O maior criminoso da história de Gotham iria sair
livre, com uma nova vida, porque alguém em algum lugar decidiu que ele não
deveria pagar pelos seus crimes.
Jason
bebeu mais e mais, a garganta já acostumada à agressão ardente do uísque, e
soltou um rosnado baixo que vinha por conta própria das regiões mais profundas
de seu peito. Ele pensou em fazer uma visita ao tal Dr. Fell, fantasiou sobre tirar
dele as informações que a ética de Bruce não conseguiriam desencavar. No sonho,
Jason viu a si mesmo asfixiando o homem, arrancando os dentes dele,
espancando-o com um pé de cabra. Quando despertou, percebeu-se sentado numa
poça de álcool derramado pela garrafa que tinha escapado de sua mão. Ele notou
que a bebida tinha transformado o tapete da sala num objeto altamente
inflamável, e pensou em atear fogo ao apartamento que Bruce tinha lhe dado na
esperança de que isso dissesse ao pai tudo que Jason não conseguia dizer
sozinho. Dormiu de novo, dessa vez por muito mais tempo, e despertou com o sol
em seus olhos. A dor de cabeça era ruim, principalmente por causa da música
alta, mas não era pior do que lutar com as costelas quebradas ou desviar de
tiros com uma bala alojada em seu braço.
Jason
se pôs de pé, trôpego, e procurou pelo capacete. Lembrando-se pela septuagésima
vez de comprar um celular novo, ele fixou o elmo vermelho ao redor do encaixe
no gorjal de sua armadura de kevlar e murmurou o comando para que a
inteligência artificial do capacete fizesse uma chamada.
—
Estava esperando você ligar — Barbara
atendeu.
***
—
Escota só essa — disse o computador.
— Se o Batman se veste de morcego pra
assustar bandidos comuns, por que ele não se veste de urso polar para enfrentar
o Pinguim?
Tim
revirou os olhos, arrependendo-se amargamente de ter dado ao sistema
operacional da caverna um senso de humor. Parecia uma boa ideia na hora –
imagine a cara de Bruce quando fosse forçado a ouvir piadinhas e comentários
sem graça durante a investigação de algum crime sério –, mas desde que fora
incumbido de fornecer suporte virtual para o time a brincadeira teve tempo de
amargar e, retroativamente, tornar-se a decisão mais irrefletida da vida de
Tim. E olhe que ele tinha várias desse tipo.
—
Muito boa — Alfred comentou, depois de rir daquele jeito contido de lorde
britânico. — Patrão Tim, isso é incrível. Acha que poderia fazer algo parecido
com o sistema de segurança da mansão?
—
Claro, Al — Tim mentiu, aproveitando que estava de costas para o mordomo para
esconder sua carranca. Estava ouvindo piadas desde a madrugada passada – Parece um jeito extremo de o Coringa se
divorciar da Arlequina, não? –, e a única coisa que lhe impedia de desfazer
aquele erro terrível eram os algoritmos de reconhecimento facial e busca
profunda que o computador estava rodando. Interromper aquele processo seria
jogar fora horas de trabalho, piadas ou não. — Assim que eu terminar aqui.
O
mordomo deixou o café da manhã de Tim numa bandeja ao alcance das mãos: ovos
cozidos amassados, bacon magro malpassado, presunto toscano em fatias, toranjas
descascadas e vitamina de morango. Só o cheiro da coisa curou o mau humor de
Tim, que agradeceu a Alfred.
—
Não há de quê — ele olhou para os muitos monitores afixados à parede da caverna
numa tentativa singela de dar sentido aos números e letras que desciam pela
miríade de prompts de comando. —
Algum progresso? Vejo que está usando recursos diferentes dos do patrão Bruce.
—
É isso aí — Tim encheu a boca com uma garfada de bacon e recostou-se na
poltrona de couro preto que era grande demais para acomodar seu corpo
adolescente da mesma forma que servia de encosto para as costas enormes de
Bruce. — Esse tal de Fell parece limpo na superfície da internet e também não
aparece em nenhum dos registros alterados, então eu decidi procurar por ele na
parte deletada da rede.
—
Isso soa trabalhoso.
—
Nem tanto — Tim minimizou, apreciando a própria capacidade de ser falsamente
modesto. — Só é difícil procurar pelo rosto do sujeito nos bancos de dados do
mundo todo. Pro computador, digo. Essa pode ser a máquina mais potente dos EUA,
mas estamos falando de toda a
internet.
—
Eu dou conta — interveio o
computador. — Mil cilindradas, baby. Vrum, vrum.
Alfred
riu novamente, e Tim soltou um longo suspiro antes de abocanhar o resto de seu
café da manhã. O processo inteiro durou até quase o almoço, que Tim precisou
impedir Alfred de preparar porque já estava de saída, e acabou chegando à mesma
conclusão que as buscas de Barbara, Bruce e Clark Kent: o Dr. Roman Fell era
quem dizia ser e não tinha qualquer relação com o crime organizado, fosse
dentro ou fora de Gotham. Uma pessoa menos otimista que Tim poderia considerar
a coisa toda como uma gigantesca perda de tempo, mas ele próprio viu naquele
trabalho a confirmação definitiva de que tudo estava certo com o Coringa.
Que frase
amaldiçoada,
Tim pensou.
—
Isso é o que penso que é?
Bruce
terminava de abotoar as mangas de sua camisa quando o terceiro de seus filhos
adotivos depositou sobre sua cama uma pasta repleta de planilhas impressas.
Tim, que entrou rapidamente na esperança de deixar a papelada e ir embora o
mais rápido possível, interrompeu-se com a mão na maçaneta da porta e virou-se
para encarar o pai com sua melhor expressão de placidez. O quarto de Bruce cheirava
a água quente e perfume masculino forte; o cabelo dele ainda estava molhado na
nuca, e seus pés descalços pareciam ser o próximo passo de seu impecável ritual
de arrumação pré jantar importante.
—
Os resultados de minha análise — Tim apontou para a pasta sobre os lençóis
grossos da cama que Bruce nunca usava. — Já pedi pra Alfred lhe avisar que não
achei nada, mas pensei que gostaria de dar uma olhada nas especificações. Caso
queira checar uma segunda vez.
—
Pensou certo — Bruce moveu-se até a pasta e, ajustando as mangas da camisa aos
músculos que mal cabiam nela, abriu-a. Ele passou os olhos pelas planilhas
meneando a cabeça positivamente e, percebendo o remexer dos dedos de Tim na
maçaneta da porta, ergueu os olhos para ele. — O que foi?
Tim
largou a maçaneta e colocou ambas as mãos atrás das costas. Deu de ombros,
sorrindo:
—
O que foi o quê? — Fingiu notar o paletó recém-passado num cabide pendurado na
cabeceira da cama. — Pra que essa arrumação toda? Vamos comemorar?
—
Gotham vai — Bruce respondeu, seus olhos atentos aos maneirismos de Tim. — O
prefeito dará um jantar hoje à noite para comemorar a cura do Coringa. “Uma
grande conquista” para a administração dele. Vai ser minha chance de conhecer o
Dr. Fell em pessoa. Agradecer, talvez.
—
Maneiro — Tim disse, planejando emendar com outra frase qualquer. Nada saiu.
Bruce
ergueu uma sobrancelha.
—
Eu tenho um encontro e estou atrasado — Tim admitiu, passado um momento de
silêncio. — Mas não pense que eu fiz um trabalho porco ou coisa assim só porque
estava com pressa. Sabe que minha prioridade é a missão. Eu só... — Ele deixou
o ar sair, vencido pelo próprio nervosismo. — Posso ir?
Era
perigoso falar a verdade quando aquele era o assunto em questão – Dick se mudou
de cidade pouco tempo depois de começar a sair por aí namorando em vez de
patrulhar e, embora ninguém admitisse isso, era exatamente por causa disso que
ele e Bruce discordaram pela primeira vez. Tim pensava, porém, que seria ainda
mais perigoso mentir. As desculpas que Dick arranjava para não aparecer quando
deveria tinham irritado Bruce bem mais do que a falta de compromisso em si.
O
pai adotivo de Tim encarou o filho por um momento que poderia ter durado tanto
horas quanto centésimos de segundo. Ao término dele, disse:
—
Claro que pode. Você fez um bom trabalho. Vá descansar.
Tim
deu um pulinho antes de praticamente voar pela porta, deixando um “obrigado”
arfante para trás. Ele deslizou pelo carpete dos corredores superiores da
mansão, pulou por sobre o parapeito da galeria do primeiro andar e aterrissou
rolando na antessala das grandes portas duplas que davam para o pátio. Ele
sacou o celular do bolso enquanto corria para a garagem, para uma das motos que
Dick havia trazido para serem guardadas ali enquanto ele cuidava do Coringa.
Mal a ligação conectou, disse:
—
Eu sei. Me desculpe. Daqui a pouco eu chego.
—
Achei que estava me dando um bolo. De
novo. — Steph respondeu do outro lado da linha. Ela tentava soar irritada,
mas havia riso em sua voz. — Podia ter
avisado que ia faltar, sabia? Aliás, deveria parar de faltar. Se seu pai não fosse dono da Academia de Gotham, você já
estaria expulso.
—
Ele não é dono — Tim riu, antecipando o sorriso rosado dela quando o visse
chegando; os cabelos louros ao vento, os olhos azuis brilhando celestes no sol
forte do verão. — Só acionista majoritário.
***
Dick
decidiu que Philipps era um colega muito melhor que Clemens. Ele estava
indeciso, uma vez que Clemens mal tivera tempo para deixar transparecer outras
facetas de sua personalidade, mas quando Philipps voltou do descanso com uma
caixa fechada de rosquinhas “para o meu parceiro”, Dick se viu menos
entristecido por Clemens não gostar de cintos de segurança.
Não
odiar um colega era o primeiro passo para suportar melhor as horas que se
passavam sem que praticamente nada acontecesse. O novo comboio de escolta
estava em viagem há seis horas – tempo mais do que suficiente para fazer uma
viagem de vinte quilômetros para as cercanias da cidade, mas quase insuficiente
para despistar qualquer suspeita de perseguição e chegar no destino sem chamar
a atenção de curiosos. O destino em questão era um dos muitos armazéns antigos
das Indústrias Wayne. Do lado de dentro ele até poderia parecer o interior de
uma clínica sofisticada, mas por fora era tão decrépito e monótono quanto
qualquer outro prédio na região. Não havia muito para se olhar além dele na
esquina em que a viatura de Dick fora estacionada: os poucos mendigos que
viviam nos prédios abandonados adjacentes tinham sido acolhidos pela Fundação
Wayne dois dias antes, e a pouca movimentação visível dentro deles era de
policiais locais e federais de tocaia. Se Dick fosse só um policial normal
servindo de isca para qualquer ataque de supervilão querendo libertar ou
acertar as contas com o Coringa, ele poderia distrair a mente durante seus
ocasionais quinze minutos de descanso – mas um vigilante disfarçado de policial
tinha de pegar sua marmita e ir comer no topo de um dos prédios da vizinhança,
onde o panorama lhe permitiria ver como iam os policiais. Gordon lhe mandava sinais
com a luz de sua lanterna nessas horas, confirmando sua situação inalterada, e
Dick mastigava sua refeição esperando que a cirurgia do Coringa começasse logo.
Porque
é claro que não iriam simplesmente
operar o palhaço como se ele fosse um paciente normal. Rumores haviam chegado
pelo rádio que os médicos não tinham equipamento e conhecimento necessários
para lidar com o dito-cujo. Algo na estrutura molecular da pele do Coringa
fazia com que ela reagisse de forma anormal a cortes, assim como seu sistema nervoso
parecia rejeitar a anestesia, e uma série de outros efeitos bizarros causados
pelos tonéis das Químicas Ace mudaram tanto a posição quanto o formato de
muitos de seus órgãos internos. A coisa toda acabara com o cronograma inicial
da polícia, e a cada minuto o nervosismo geral aumentava porque era
proporcional a possibilidade de algo dar errado.
Dick,
por si só, não estava nada tenso. Anos combatendo o crime haviam criado uma
espécie de radar em seu interior, um sexto sentido que avisava quando algo poderia
ou não dar errado – e esse radar lhe dizia que estavam sãos e salvos, sem
ninguém ativamente procurando por eles. O vexame da Arlequina tinha
desencorajado o resto dos vilões, e havia muito mais pessoas de bem querendo o
Coringa morto do que criminosos. Nenhuma pessoa de bem seria capaz de encontrar
o Coringa agora.
—
Não se mexa.
Bom,
talvez uma seja.
—
Eu sabia que ela tentaria algo assim, mas não que mandaria você — Dick disse,
largando sua marmita ao erguer ambas as mãos em sinal de rendição. — Tempos
desesperados, de fato.
—
Eu mandei não se mexer — a voz cibernética de Jason trovejou, e o clique de
abertura da trava de segurança de uma pistola se fez ouvir em seguida. — Isso
inclui deixar Gordon te ver com as mãos para o alto. Coma sua comida, menino-prodígio.
—
Comer conta como se mexer? Porque eu... — Um pedaço de concreto explodiu na
borda do terraço em frente a Dick, interrompendo-o. Houve um momento de
confusão e susto quando ele percebeu que a arma de Jason estava silenciada, e
que não estava carregada com balas de borracha. — Ah, qual é. Acha mesmo que
consegue me intimidar assim? Eu enfrento bandidos armados todo dia.
—
Mesmo? — Outra explosão de concreto eclodiu debaixo da marmita deposta de Dick,
que girou no ar espalhando comida antes de pousar entre as pernas cruzadas
dele. Um segundo tiro, esse de raspão, atingiu o chão sob o garfo que Dick
estivera usando e o mandou numa pirueta para dentro da vasilha. — Quantos
bandidos treinados pelo Bruce você enfrentou?
—
Um — Dick olhava para sua bela calça jeans arruinada pelas manchas de molho de
macarrão. — Você deve se lembrar. Ele tinha acabado de ressuscitar e precisava
de uma surra.
—
Mas não foi você que deu a surra, foi? — Jason riu. O som parecia demoníaco
através do sintetizador do capacete. — Pelo que me lembro, acabou com você
usando muletas por duas semanas.
—
É isso que vai fazer? Me deixar de muletas?
—
Cadeira de rodas. Enquanto você agoniza, eu pego sua jaqueta, sua lanterna e
passo eu mesmo o sinal em código Morse pro Gordon. — Outra risada. — Tive tempo
mais que suficiente para aprender como vocês se comunicam. Acha que ele vai
perceber a diferença entre você e eu nessa luz?
—
Você adoraria ser bonito o bastante
pra se passar por mim, né?
Dick
respondeu com a piada por instinto, mecanicamente, com uma sensação gélida se
espalhando por seu corpo. O sol estava se pondo contra o ponto de vista de
Gordon – tudo que ele veria contrastando com o alaranjado profundo do
crepúsculo seria a silhueta de um policial sentado. Dick queria se chutar na
bunda por ter escolhido um ponto tão ruim para a troca de contato. Bruce o
havia treinado melhor que isso.
Sem
dizer mais nada, Dick baixou as mãos e comeu a pouca comida que tinha restado
na marmita. Ele esperou em silêncio pelo momento em que Gordon sinalizaria no
prédio em frente, apurando os ouvidos para capitar algum movimento às suas
costas, algo que denunciasse onde exatamente Jason estava e como ele seria
capaz de manter a arma apontada para Dick sem que Gordon o visse – mas a hora
do código Morse chegou e passou sem que o mínimo farfalhar de passos ou lufada
de ar.
—
Certo. E agora? — Dick quis saber.
—
Agora — Jason parecia muito mais próximo —, você faz uma escolha.
Uma
bolsa militar foi atirada no chão ao lado de Dick. Com o zíper aberto, o
interior da bolsa revelava os contornos azuis do peitoral do uniforme do Asa
Noturna.
—
Você pode ficar amarrado aqui enquanto eu entro lá e mato o palhaço — a voz
sintetizada prosseguiu —, ou pode vir comigo pra colocar juízo na minha cabeça
enquanto interrogamos ele.
—
O quê?
—
Isso é você decidindo ficar aqui?
—
Não — Dick decidiu que estava cansado de conversar com o panorama à frente. —
Posso me virar?
—
Pode. Devagar.
Jason
estava a cinco metros – próximo o bastante para acertar qualquer tiro que
quisesse, distante o suficiente para que uma reação rápida fosse impossível sem
qualquer tipo de distração. A arma não era do modelo que Bruce havia mandado
fazer para ele, e sim uma pistola .45 comum com os silenciadores feitos pela
WayneTech acoplados no cano. Dick tentou não olhar para o interior escuro do
silenciador apontado para a sua cabeça ao falar com o rosto sem forma do elmo
vermelho à sua frente.
—
Se veio aqui matar o Coringa, por que precisa de mim? — Dick perguntou. — Bruce
vai ficar mais chateado se eu participar dessa loucura. Ele só pega leve se for
você fazendo besteira.
—
Não vim matar o palhaço — Jason disse, inclinando a cabeça para olhar melhor
para o irmão mais velho por sobre a arma apontada. — Vim desmascará-lo. Ele
está mentindo. Isso tudo é uma armação. Você sabe disso, Barbara sabe... Bruce
não quer acreditar, mas ele também sabe. Arlequina levaria um tiro por ele. A
coisa toda foi só uma farsa, mais um plano mirabolante pra deixar centenas de
inocentes mortos antes de voltar pro Arkham. Ele estava preparado para agir de
um jeito diferente no túnel, mas posso pegar ele de surpresa agora. Fazer ele
admitir. — A pausa que se seguiu foi longa, como se o espírito dentro da
armadura assombrada que era o traje do Capuz Vermelho estivesse com a boca
cheia d’água ante a perspectiva de ter um momento a sós com o Coringa. — O
problema é que ninguém vai acreditar em mim. Não, eu sou instável demais.
Preciso de uma testemunha confiável.
—
O que faz pensar que sou confiável?
—
Eu sei o que você fez com o palhaço depois que morri.
Dick
congelou. Barbara havia prometido não contar a ninguém sobre a ocasião em que,
durante uma falta de luz coordenada no Arkham, Dick entrou na cela do Coringa e
bateu nele até que ele fosse parar numa UTI. Tinha sido logo depois da morte do
Jason – metade da UCH já tinha visitado o Coringa e deixado marcas nele, de
modo que ninguém suspeitou de forças externas. Dick simplesmente não conseguia
ver o quão devastado Bruce ficou. Queria fazer alguma coisa, e Barbara lhe deu
oportunidade para tanto.
—
Não pode me chantagear com isso — Dick gaguejou. — Já faz uma década. Bruce não
ligaria.
—
Acha mesmo?
A
pergunta rompeu alguma coisa dentro do primeiro filho adotivo de Bruce Wayne, e
de repente ele se sentiu desesperado como nunca antes. A decepção de Bruce era
uma coisa terrível de se presenciar.
—
Não vim aqui te chantagear — Jason disse, de repente. A inflexão de sua voz
denunciava surpresa, e Dick percebeu que estava demonstrando no rosto parte do
desespero em seu interior. — Quero que venha comigo. Quero que me impeça de
fazer uma besteira. E quero que ateste pro Bruce depois. Pode fazer isso?
Dick
já não pensava na situação presente, mas sim na possibilidade de Bruce
descobrir que ele agira de forma não muito melhor que um bando de policiais
corruptos; que não tinha agido melhor que o próprio Jason. Não, aquilo não
poderia vazar. Maldita Barbara.
—
Posso, sim.
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