Pular para o conteúdo principal

O Dragão e o Morcego – Três

 

Jason não chegou a entrar completamente em casa quando o corpo cedeu sob peso de seus tormentos.

Suas pernas falharam com um de seus pés ainda do lado de fora, o capacete recém-removido em sua mão esquerda, e ele sentou-se no parapeito da janela por onde entrara sem ligar para a probabilidade de alguém ver o Capuz Vermelho desmascarado com a perna pra fora do apartamento de Jason Todd. Largando o capacete no chão com o baque alto – a coisa era surpreendentemente pesada –, ele deixou que o ar noturno tingido de esgoto e lixo passasse por seu rosto numa brisa quase fria. O silêncio de fora refletia-se dentro: Jason não pensava em nada, não sentia nada, não existia no interior de sua mente. Havia apenas ele.

Bruce nunca sorria quando estava fantasiado, mas ele chegou muito perto disso quando confirmou que o palhaço tinha atirado na Arlequina para salvar Dick. Meu Deus, Jason pensou. As três pessoas que mais detesto no mundo envolvidas no motivo da felicidade do meu pai. Ele teve de se conter para não surtar ali mesmo, no túnel arruinado pela explosão e por Solomon Grundy, e terminar o que tinha começado logo depois de fugir da Liga dos Assassinos. Teve de fingir alívio por Grundy não ter deixando Dick aleijado, fingir controle enquanto a polícia mais corrupta do mundo levava o palhaço embora, fingir que não se ressentia por Bruce ignorar completamente o que tudo aquilo significava para seu segundo filho adotivo. Houve uma época, muito tempo atrás, em que Jason teria dado tudo para ver Bruce daquele jeito: leve, quase sorridente, esperançoso, orgulhoso do próprio trabalho. Naquela noite, o bom-humor dele era como sal numa ferida que se recusava a fechar. Como uma piada interna na qual toda a Gotham tomava parte.

Jason impulsionou o resto de si para dentro com um suspiro entrecortado e fechou a janela com força suficiente para criar uma teia de rachaduras no vidro. Inconscientemente influenciado pela rotina, ele começou a se despir pelas luvas quando se deu conta de que não seria capaz de levar uma noite comum depois do acontecido. Ainda de uniforme, Jason se dirigiu ao armário da cozinha e usou seus dedos nus para arrancar o lacre de uma garrafa de uísque que Alfred tinha lhe dado de presente no último Natal. O presente, recebido às escondidas porque Bruce jamais aprovaria um de seus aprendizes ingerindo álcool, provavelmente teria ficado sem uso se Jason não estivesse tão certo de que estava prestes a fazer uma besteira. Ele bebeu direto do gargalo, sufocando e tossindo entre goles, e sentiu um prazer sombrio quando os efeitos da bebida turvaram seus sentidos aperfeiçoados. Ele poderia pegar uma briga com uma pessoa normal sem medo de deixá-la aleijada e, rindo sozinho com uísque escorrendo pelo queixo, teve vontade de fazê-lo.

Ligando o aparelho de som na sala no máximo, torcendo para incomodar os apartamentos vizinhos o suficiente para que alguém viesse reclamar, Jason pensou nele. Era difícil fazê-lo sem reviver a dor das pancadas e renovar o medo projetado por aqueles olhos verdes, mas Jason insistiu no pensamento até que o uísque amortecesse a sensação absoluta de terror advinda daquelas lembranças. Ele pensou no palhaço, pensou na escolta armada que o protegia levando-o a seu destino: uma clínica secreta fora da cidade onde alguns dos melhores cirurgiões do mundo, todos pagos por Bruce, transformariam a máscara de loucura e ódio dele num rosto que Jason não seria capaz de reconhecer na rua. Pensou em que nome escolheriam para ele, que profissão lhe dariam. Deixariam que ele ficasse perto de crianças, ou o forçariam a bater de porta em porta para avisar que era um homicida maníaco registrado? Não, claro que não. Ninguém ficaria sabendo o novo nome dele, o novo rosto. O maior criminoso da história de Gotham iria sair livre, com uma nova vida, porque alguém em algum lugar decidiu que ele não deveria pagar pelos seus crimes.

Jason bebeu mais e mais, a garganta já acostumada à agressão ardente do uísque, e soltou um rosnado baixo que vinha por conta própria das regiões mais profundas de seu peito. Ele pensou em fazer uma visita ao tal Dr. Fell, fantasiou sobre tirar dele as informações que a ética de Bruce não conseguiriam desencavar. No sonho, Jason viu a si mesmo asfixiando o homem, arrancando os dentes dele, espancando-o com um pé de cabra. Quando despertou, percebeu-se sentado numa poça de álcool derramado pela garrafa que tinha escapado de sua mão. Ele notou que a bebida tinha transformado o tapete da sala num objeto altamente inflamável, e pensou em atear fogo ao apartamento que Bruce tinha lhe dado na esperança de que isso dissesse ao pai tudo que Jason não conseguia dizer sozinho. Dormiu de novo, dessa vez por muito mais tempo, e despertou com o sol em seus olhos. A dor de cabeça era ruim, principalmente por causa da música alta, mas não era pior do que lutar com as costelas quebradas ou desviar de tiros com uma bala alojada em seu braço.

Jason se pôs de pé, trôpego, e procurou pelo capacete. Lembrando-se pela septuagésima vez de comprar um celular novo, ele fixou o elmo vermelho ao redor do encaixe no gorjal de sua armadura de kevlar e murmurou o comando para que a inteligência artificial do capacete fizesse uma chamada.

Estava esperando você ligar — Barbara atendeu.

***

Escota só essa — disse o computador. — Se o Batman se veste de morcego pra assustar bandidos comuns, por que ele não se veste de urso polar para enfrentar o Pinguim?

Tim revirou os olhos, arrependendo-se amargamente de ter dado ao sistema operacional da caverna um senso de humor. Parecia uma boa ideia na hora – imagine a cara de Bruce quando fosse forçado a ouvir piadinhas e comentários sem graça durante a investigação de algum crime sério –, mas desde que fora incumbido de fornecer suporte virtual para o time a brincadeira teve tempo de amargar e, retroativamente, tornar-se a decisão mais irrefletida da vida de Tim. E olhe que ele tinha várias desse tipo.

— Muito boa — Alfred comentou, depois de rir daquele jeito contido de lorde britânico. — Patrão Tim, isso é incrível. Acha que poderia fazer algo parecido com o sistema de segurança da mansão?

— Claro, Al — Tim mentiu, aproveitando que estava de costas para o mordomo para esconder sua carranca. Estava ouvindo piadas desde a madrugada passada – Parece um jeito extremo de o Coringa se divorciar da Arlequina, não? –, e a única coisa que lhe impedia de desfazer aquele erro terrível eram os algoritmos de reconhecimento facial e busca profunda que o computador estava rodando. Interromper aquele processo seria jogar fora horas de trabalho, piadas ou não. — Assim que eu terminar aqui.

O mordomo deixou o café da manhã de Tim numa bandeja ao alcance das mãos: ovos cozidos amassados, bacon magro malpassado, presunto toscano em fatias, toranjas descascadas e vitamina de morango. Só o cheiro da coisa curou o mau humor de Tim, que agradeceu a Alfred.

— Não há de quê — ele olhou para os muitos monitores afixados à parede da caverna numa tentativa singela de dar sentido aos números e letras que desciam pela miríade de prompts de comando. — Algum progresso? Vejo que está usando recursos diferentes dos do patrão Bruce.

— É isso aí — Tim encheu a boca com uma garfada de bacon e recostou-se na poltrona de couro preto que era grande demais para acomodar seu corpo adolescente da mesma forma que servia de encosto para as costas enormes de Bruce. — Esse tal de Fell parece limpo na superfície da internet e também não aparece em nenhum dos registros alterados, então eu decidi procurar por ele na parte deletada da rede.

— Isso soa trabalhoso.

— Nem tanto — Tim minimizou, apreciando a própria capacidade de ser falsamente modesto. — Só é difícil procurar pelo rosto do sujeito nos bancos de dados do mundo todo. Pro computador, digo. Essa pode ser a máquina mais potente dos EUA, mas estamos falando de toda a internet.

Eu dou conta — interveio o computador. — Mil cilindradas, baby. Vrum, vrum.

Alfred riu novamente, e Tim soltou um longo suspiro antes de abocanhar o resto de seu café da manhã. O processo inteiro durou até quase o almoço, que Tim precisou impedir Alfred de preparar porque já estava de saída, e acabou chegando à mesma conclusão que as buscas de Barbara, Bruce e Clark Kent: o Dr. Roman Fell era quem dizia ser e não tinha qualquer relação com o crime organizado, fosse dentro ou fora de Gotham. Uma pessoa menos otimista que Tim poderia considerar a coisa toda como uma gigantesca perda de tempo, mas ele próprio viu naquele trabalho a confirmação definitiva de que tudo estava certo com o Coringa.

Que frase amaldiçoada, Tim pensou.

— Isso é o que penso que é?

Bruce terminava de abotoar as mangas de sua camisa quando o terceiro de seus filhos adotivos depositou sobre sua cama uma pasta repleta de planilhas impressas. Tim, que entrou rapidamente na esperança de deixar a papelada e ir embora o mais rápido possível, interrompeu-se com a mão na maçaneta da porta e virou-se para encarar o pai com sua melhor expressão de placidez. O quarto de Bruce cheirava a água quente e perfume masculino forte; o cabelo dele ainda estava molhado na nuca, e seus pés descalços pareciam ser o próximo passo de seu impecável ritual de arrumação pré jantar importante.

— Os resultados de minha análise — Tim apontou para a pasta sobre os lençóis grossos da cama que Bruce nunca usava. — Já pedi pra Alfred lhe avisar que não achei nada, mas pensei que gostaria de dar uma olhada nas especificações. Caso queira checar uma segunda vez.

— Pensou certo — Bruce moveu-se até a pasta e, ajustando as mangas da camisa aos músculos que mal cabiam nela, abriu-a. Ele passou os olhos pelas planilhas meneando a cabeça positivamente e, percebendo o remexer dos dedos de Tim na maçaneta da porta, ergueu os olhos para ele. — O que foi?

Tim largou a maçaneta e colocou ambas as mãos atrás das costas. Deu de ombros, sorrindo:

— O que foi o quê? — Fingiu notar o paletó recém-passado num cabide pendurado na cabeceira da cama. — Pra que essa arrumação toda? Vamos comemorar?

— Gotham vai — Bruce respondeu, seus olhos atentos aos maneirismos de Tim. — O prefeito dará um jantar hoje à noite para comemorar a cura do Coringa. “Uma grande conquista” para a administração dele. Vai ser minha chance de conhecer o Dr. Fell em pessoa. Agradecer, talvez.

— Maneiro — Tim disse, planejando emendar com outra frase qualquer. Nada saiu.

Bruce ergueu uma sobrancelha.

— Eu tenho um encontro e estou atrasado — Tim admitiu, passado um momento de silêncio. — Mas não pense que eu fiz um trabalho porco ou coisa assim só porque estava com pressa. Sabe que minha prioridade é a missão. Eu só... — Ele deixou o ar sair, vencido pelo próprio nervosismo. — Posso ir?

Era perigoso falar a verdade quando aquele era o assunto em questão – Dick se mudou de cidade pouco tempo depois de começar a sair por aí namorando em vez de patrulhar e, embora ninguém admitisse isso, era exatamente por causa disso que ele e Bruce discordaram pela primeira vez. Tim pensava, porém, que seria ainda mais perigoso mentir. As desculpas que Dick arranjava para não aparecer quando deveria tinham irritado Bruce bem mais do que a falta de compromisso em si.

O pai adotivo de Tim encarou o filho por um momento que poderia ter durado tanto horas quanto centésimos de segundo. Ao término dele, disse:

— Claro que pode. Você fez um bom trabalho. Vá descansar.

Tim deu um pulinho antes de praticamente voar pela porta, deixando um “obrigado” arfante para trás. Ele deslizou pelo carpete dos corredores superiores da mansão, pulou por sobre o parapeito da galeria do primeiro andar e aterrissou rolando na antessala das grandes portas duplas que davam para o pátio. Ele sacou o celular do bolso enquanto corria para a garagem, para uma das motos que Dick havia trazido para serem guardadas ali enquanto ele cuidava do Coringa. Mal a ligação conectou, disse:

— Eu sei. Me desculpe. Daqui a pouco eu chego.

Achei que estava me dando um bolo. De novo. — Steph respondeu do outro lado da linha. Ela tentava soar irritada, mas havia riso em sua voz. — Podia ter avisado que ia faltar, sabia? Aliás, deveria parar de faltar. Se seu pai não fosse dono da Academia de Gotham, você já estaria expulso.

— Ele não é dono — Tim riu, antecipando o sorriso rosado dela quando o visse chegando; os cabelos louros ao vento, os olhos azuis brilhando celestes no sol forte do verão. — Só acionista majoritário.

***

Dick decidiu que Philipps era um colega muito melhor que Clemens. Ele estava indeciso, uma vez que Clemens mal tivera tempo para deixar transparecer outras facetas de sua personalidade, mas quando Philipps voltou do descanso com uma caixa fechada de rosquinhas “para o meu parceiro”, Dick se viu menos entristecido por Clemens não gostar de cintos de segurança.

Não odiar um colega era o primeiro passo para suportar melhor as horas que se passavam sem que praticamente nada acontecesse. O novo comboio de escolta estava em viagem há seis horas – tempo mais do que suficiente para fazer uma viagem de vinte quilômetros para as cercanias da cidade, mas quase insuficiente para despistar qualquer suspeita de perseguição e chegar no destino sem chamar a atenção de curiosos. O destino em questão era um dos muitos armazéns antigos das Indústrias Wayne. Do lado de dentro ele até poderia parecer o interior de uma clínica sofisticada, mas por fora era tão decrépito e monótono quanto qualquer outro prédio na região. Não havia muito para se olhar além dele na esquina em que a viatura de Dick fora estacionada: os poucos mendigos que viviam nos prédios abandonados adjacentes tinham sido acolhidos pela Fundação Wayne dois dias antes, e a pouca movimentação visível dentro deles era de policiais locais e federais de tocaia. Se Dick fosse só um policial normal servindo de isca para qualquer ataque de supervilão querendo libertar ou acertar as contas com o Coringa, ele poderia distrair a mente durante seus ocasionais quinze minutos de descanso – mas um vigilante disfarçado de policial tinha de pegar sua marmita e ir comer no topo de um dos prédios da vizinhança, onde o panorama lhe permitiria ver como iam os policiais. Gordon lhe mandava sinais com a luz de sua lanterna nessas horas, confirmando sua situação inalterada, e Dick mastigava sua refeição esperando que a cirurgia do Coringa começasse logo.

Porque é claro que não iriam simplesmente operar o palhaço como se ele fosse um paciente normal. Rumores haviam chegado pelo rádio que os médicos não tinham equipamento e conhecimento necessários para lidar com o dito-cujo. Algo na estrutura molecular da pele do Coringa fazia com que ela reagisse de forma anormal a cortes, assim como seu sistema nervoso parecia rejeitar a anestesia, e uma série de outros efeitos bizarros causados pelos tonéis das Químicas Ace mudaram tanto a posição quanto o formato de muitos de seus órgãos internos. A coisa toda acabara com o cronograma inicial da polícia, e a cada minuto o nervosismo geral aumentava porque era proporcional a possibilidade de algo dar errado.

Dick, por si só, não estava nada tenso. Anos combatendo o crime haviam criado uma espécie de radar em seu interior, um sexto sentido que avisava quando algo poderia ou não dar errado – e esse radar lhe dizia que estavam sãos e salvos, sem ninguém ativamente procurando por eles. O vexame da Arlequina tinha desencorajado o resto dos vilões, e havia muito mais pessoas de bem querendo o Coringa morto do que criminosos. Nenhuma pessoa de bem seria capaz de encontrar o Coringa agora.

— Não se mexa.

Bom, talvez uma seja.

— Eu sabia que ela tentaria algo assim, mas não que mandaria você — Dick disse, largando sua marmita ao erguer ambas as mãos em sinal de rendição. — Tempos desesperados, de fato.

— Eu mandei não se mexer — a voz cibernética de Jason trovejou, e o clique de abertura da trava de segurança de uma pistola se fez ouvir em seguida. — Isso inclui deixar Gordon te ver com as mãos para o alto. Coma sua comida, menino-prodígio.

— Comer conta como se mexer? Porque eu... — Um pedaço de concreto explodiu na borda do terraço em frente a Dick, interrompendo-o. Houve um momento de confusão e susto quando ele percebeu que a arma de Jason estava silenciada, e que não estava carregada com balas de borracha. — Ah, qual é. Acha mesmo que consegue me intimidar assim? Eu enfrento bandidos armados todo dia.

— Mesmo? — Outra explosão de concreto eclodiu debaixo da marmita deposta de Dick, que girou no ar espalhando comida antes de pousar entre as pernas cruzadas dele. Um segundo tiro, esse de raspão, atingiu o chão sob o garfo que Dick estivera usando e o mandou numa pirueta para dentro da vasilha. — Quantos bandidos treinados pelo Bruce você enfrentou?

— Um — Dick olhava para sua bela calça jeans arruinada pelas manchas de molho de macarrão. — Você deve se lembrar. Ele tinha acabado de ressuscitar e precisava de uma surra.

— Mas não foi você que deu a surra, foi? — Jason riu. O som parecia demoníaco através do sintetizador do capacete. — Pelo que me lembro, acabou com você usando muletas por duas semanas.

— É isso que vai fazer? Me deixar de muletas?

— Cadeira de rodas. Enquanto você agoniza, eu pego sua jaqueta, sua lanterna e passo eu mesmo o sinal em código Morse pro Gordon. — Outra risada. — Tive tempo mais que suficiente para aprender como vocês se comunicam. Acha que ele vai perceber a diferença entre você e eu nessa luz?

— Você adoraria ser bonito o bastante pra se passar por mim, né?

Dick respondeu com a piada por instinto, mecanicamente, com uma sensação gélida se espalhando por seu corpo. O sol estava se pondo contra o ponto de vista de Gordon – tudo que ele veria contrastando com o alaranjado profundo do crepúsculo seria a silhueta de um policial sentado. Dick queria se chutar na bunda por ter escolhido um ponto tão ruim para a troca de contato. Bruce o havia treinado melhor que isso.

Sem dizer mais nada, Dick baixou as mãos e comeu a pouca comida que tinha restado na marmita. Ele esperou em silêncio pelo momento em que Gordon sinalizaria no prédio em frente, apurando os ouvidos para capitar algum movimento às suas costas, algo que denunciasse onde exatamente Jason estava e como ele seria capaz de manter a arma apontada para Dick sem que Gordon o visse – mas a hora do código Morse chegou e passou sem que o mínimo farfalhar de passos ou lufada de ar.

— Certo. E agora? — Dick quis saber.

— Agora — Jason parecia muito mais próximo —, você faz uma escolha.

Uma bolsa militar foi atirada no chão ao lado de Dick. Com o zíper aberto, o interior da bolsa revelava os contornos azuis do peitoral do uniforme do Asa Noturna.

— Você pode ficar amarrado aqui enquanto eu entro lá e mato o palhaço — a voz sintetizada prosseguiu —, ou pode vir comigo pra colocar juízo na minha cabeça enquanto interrogamos ele.

O quê?

— Isso é você decidindo ficar aqui?

— Não — Dick decidiu que estava cansado de conversar com o panorama à frente. — Posso me virar?

— Pode. Devagar.

Jason estava a cinco metros – próximo o bastante para acertar qualquer tiro que quisesse, distante o suficiente para que uma reação rápida fosse impossível sem qualquer tipo de distração. A arma não era do modelo que Bruce havia mandado fazer para ele, e sim uma pistola .45 comum com os silenciadores feitos pela WayneTech acoplados no cano. Dick tentou não olhar para o interior escuro do silenciador apontado para a sua cabeça ao falar com o rosto sem forma do elmo vermelho à sua frente.

— Se veio aqui matar o Coringa, por que precisa de mim? — Dick perguntou. — Bruce vai ficar mais chateado se eu participar dessa loucura. Ele só pega leve se for você fazendo besteira.

— Não vim matar o palhaço — Jason disse, inclinando a cabeça para olhar melhor para o irmão mais velho por sobre a arma apontada. — Vim desmascará-lo. Ele está mentindo. Isso tudo é uma armação. Você sabe disso, Barbara sabe... Bruce não quer acreditar, mas ele também sabe. Arlequina levaria um tiro por ele. A coisa toda foi só uma farsa, mais um plano mirabolante pra deixar centenas de inocentes mortos antes de voltar pro Arkham. Ele estava preparado para agir de um jeito diferente no túnel, mas posso pegar ele de surpresa agora. Fazer ele admitir. — A pausa que se seguiu foi longa, como se o espírito dentro da armadura assombrada que era o traje do Capuz Vermelho estivesse com a boca cheia d’água ante a perspectiva de ter um momento a sós com o Coringa. — O problema é que ninguém vai acreditar em mim. Não, eu sou instável demais. Preciso de uma testemunha confiável.

— O que faz pensar que sou confiável?

— Eu sei o que você fez com o palhaço depois que morri.

Dick congelou. Barbara havia prometido não contar a ninguém sobre a ocasião em que, durante uma falta de luz coordenada no Arkham, Dick entrou na cela do Coringa e bateu nele até que ele fosse parar numa UTI. Tinha sido logo depois da morte do Jason – metade da UCH já tinha visitado o Coringa e deixado marcas nele, de modo que ninguém suspeitou de forças externas. Dick simplesmente não conseguia ver o quão devastado Bruce ficou. Queria fazer alguma coisa, e Barbara lhe deu oportunidade para tanto.

— Não pode me chantagear com isso — Dick gaguejou. — Já faz uma década. Bruce não ligaria.

— Acha mesmo?

A pergunta rompeu alguma coisa dentro do primeiro filho adotivo de Bruce Wayne, e de repente ele se sentiu desesperado como nunca antes. A decepção de Bruce era uma coisa terrível de se presenciar.

— Não vim aqui te chantagear — Jason disse, de repente. A inflexão de sua voz denunciava surpresa, e Dick percebeu que estava demonstrando no rosto parte do desespero em seu interior. — Quero que venha comigo. Quero que me impeça de fazer uma besteira. E quero que ateste pro Bruce depois. Pode fazer isso?

Dick já não pensava na situação presente, mas sim na possibilidade de Bruce descobrir que ele agira de forma não muito melhor que um bando de policiais corruptos; que não tinha agido melhor que o próprio Jason. Não, aquilo não poderia vazar. Maldita Barbara.

— Posso, sim.

[Você pode acompanhar esta história pelo Nyah! e pelo Ao3]

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Príncipe das Letras – Capítulo Seis – Resiliência do Mais Forte

  Brás de Assis percebeu, em dado momento, precisava mesmo ir trabalhar. Era assim que descansava a mente – trabalhando. O hábito surgira em seus primeiros anos na Academia, consequência do estado caótico de seus pensamentos depois de horas intermináveis de memorização, leitura e treinamento de combate. O corpo, Brás percebeu, era indiferente à exaustão espiritual dos estudos. Ele então passou a usar suas horas livres em escapadas muito pouco comuns para um jovem aluno da mais prestigiosa instituição do mundo: metia-se a aprendiz de carpinteiros, sapateiros, estivadores, alquimistas ou seja lá quem precisasse de um ajudante sem nome. O conhecimento acumulado nos anos dentro da Academia permitiam que Brás desempenhasse qualquer função, facilitando o aprendizado de novas habilidades, mas ele se concentrava no aspecto físico da coisa. Corria para dar recados, firmava tábuas para serem marteladas, mantinha o fogo de uma forja aceso... Tudo para não deixar que seus pensamentos o cons...

Resenha │ Coleção Histórica Marvel: Os X-Men (Vols. 5-8)

Desenvolvi um preconceito enorme contra os grandes roteiristas de quadrinhos dos anos 80. Não os que surgiram  nos anos 80, veja bem, mas o que atingiram seu auge na década em questão. Agora que penso a respeito, acho que tem a ver com a transição da mídia de um público para o outro – foi nos anos 80 que decidiram fazer quadrinhos "para adultos" nos EUA e, por mais que a mudança tenha trazido algumas das melhores graphic novels  de todos os tempos, ela também criou um limbo estranho: a maior parte dos quadrinhos ainda era desenhada e colorida para apelar para crianças e adolescentes e os diálogos continuavam expositivos e sem personalidade, mas temas cada vez mais "adultos" (saca só o uso de aspas só nesse parágrafo) começavam a fazer parte das histórias. O resultado, pelo menos para um observador desatento como eu, eram histórias que imploravam para que você as levasse a sério enquanto todo mundo usava ombreira e pelo menos quatro matizes de cores diferentes no uni...

Príncipe das Letras – Capítulo Cinco — Agouros na Ventania

  A pergunta veio num arfar irregular, ocasionada pelo estado quase inconsciente em que a matriarca dos Grená se encontrava depois que o Príncipe levara seus corpos ao limite: — Ficou sabendo sobre a Ducentésima Vigésima Nona? Ele sabia, sim, e não conseguia parar de sorrir desde que recebera a notícia. Era esse o motivo pelo qual lady Grená – Medeia, como agora permitia que Júlio lhe chamasse – chegava mais exausta do que o normal ao término da visita daquela noite. Bom, o motivo mais importante, pelo menos. Júlio também havia caprichado no uso dos lábios e dedos porque dentro em breve iria pedir um favor. — Não dou muita atenção a notícias do Exército — o Príncipe mentiu, afetando desinteresse enquanto vestia suas calças. — Digo, está falando do Exército, né? — Meu canarinho bobo — Medeia riu fracamente, o rosto semienterrado nas almofadas que estivera mordendo para abafar os gritos pela última meia-hora. O tremor do riso fez ondular levemente o corpo desnudado e incomume...