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Resenha | Garo: The Animation (Honoo no Kokuin)

 

  Na Era do Streaming é cada vez mais difícil condicionar o cérebro a aceitar que algumas histórias não foram feitas para serem assistidas de uma vez. Meu caso com Garo quase virou estatística por causa disso — eu me via cansado da fórmula repetitiva, apesar de evidentemente eficaz, do shounen depois de meros três episódios numa jornada que levaria vinte e quatro.

Garo: Honoo no Kokuin é uma série de animação japonesa produzida pelo Estúdio MAPPA que estreou em 2014. Ela conta a história de três Cavaleiros Makai, guardiões jurados da humanidade travando uma guerra eterna contra os Horrores, demônios adequadamente nomeados que se alimentam de quaisquer emoções negativas para se manifestar no mundo dos homens. Enquanto assistia e pesquisava a respeito, descobri que o anime é um produto licenciado, um spin-off animado de uma série tokusatsu de TV de 2005 e, antes que você pergunte, não, não é preciso assistir a série original para entender a animação. Eu sei disso em primeira mão porque eu nunca tinha ouvido falar em Garo antes do anime, que eu só descobri porque decidi procurar no portfólio da MAPPA pela minha próxima fonte de entretenimento.

É evidente que a experiência seria mais completa se eu já tivesse uma experiência anterior com o universo de armaduras místicas com vida própria, e em retrospecto acredito que foi justamente a falta dela que me travou bastante nos primeiros episódios do anime, mas eu sempre fui partidário da opinião que, se uma prequel, sequel ou reboot de uma marca existente não consegue me segurar sem a memória da história original para apelar pra minha nostalgia, então ela não presta. Honoo, felizmente, passa no teste com louvor. A pulso, mas com louvor.

Eu quase desisti do anime no segundo episódio. O traço me parecia estranho, a animação em 2D não parecia digna de nota em comparação com a última animação serial que eu tinha assistido (Kabaneri of the Iron Fortress, produzida pelo indiscutivelmente superior Estúdio WIT) e a presença de modelos 3D dos Cavaleiros chegava a me distrair das cenas que se desenrolavam. O pior agressor, porém, foi o roteiro em si. Não o argumento, que em si próprio tinha muito potencial, nem o momento-a-momento do storytelling, mas sim o roteiro em si. Garo desperdiça seis, oito episódios de quase nada acontecendo em tela e se esforçando ao máximo para me fazer acreditar que a história não está indo a lugar nenhum. Se a ideia fosse ver os vinte e quatro episódios de vez, eu teria abandonado o anime sem sombra de dúvida. O que me manteve no barco foi ter coisa melhor para fazer entre um episódio e outro, o que ocasionava pausas de vários dias e renovava minha boa vontade para com a obra.

Não estou tentando dizer que Garo é ruim. Se fosse, eu não teria insistido e sem dúvida você não estaria lendo a respeito dele aqui. Mesmo nos primeiros episódios, quando minha tolerância aos pequenos contos quase intercambiáveis e isolados narrado a mesma estrutura de Cavaleiro chega num lugar → tem um Horror lá → Cavaleiros tentam descobrir quem o Horror é, e são bem-sucedidos → Horror é derrotado, lapsos de brilho criativo resplandeciam nos quesitos de caracterização e exploração de temas. Garo: The Animation é uma história sobre personagens acima de uma história sobre o mundo em que esses personagens habitam ou mesmo sobre um desenrolar interessante de acontecimentos. Não se tratam de personagens fáceis, artificialmente carismáticos ou necessariamente reais, mas são bons personagens que permanecem consistentes consigo mesmos através das muitas mudanças pelas quais passam.

Essa talvez seja a hora de falar sobre o que Garo é. Ambientado numa versão fantástica da Espanha na década subsequente à Inquisição, o anime narra a história de Léon Luís e seu pai, Germán, dois Cavaleiros Makai que sobreviveram à perseguição religiosa que massacrou uma quantidade esmagadora de membros da ordem Makai — cavaleiros e sacerdotes que juraram proteger a humanidade dos Horrores. A perseguição, obviamente, foi motivada por um conselheiro do rei, Mendoza, que secretamente trabalha em favor dos Horrores e convenceu o grosso da população de que Cavaleiros e sacerdotes Makai são enviados do demônio. Apesar do status de fugitivos e inimigos públicos, Léon e seu pai viajam pelo reino enfrentando Horrores e desvendando detalhes da sórdida conspiração do conselheiro. Simples, né? Eu achei simples demais.

Felizmente, Garo também é sobre os próprios personagens e seus suplícios pessoais. Pai e filho convivem diariamente com o impacto psicológico da morte de Anna Luís, a mãe de Léon, que foi queimada em praça pública como bruxa enquanto ainda estava grávida. Consumido por um desejo incontrolável de vingança, Léon é incapaz de conciliar seu dever como Cavaleiro Makai e a impulsividade agressiva que seu pai foi incapaz de suprimir através do treino e da disciplina. Esse arco, que começou com o que poderia muito bem ter sido mais um protagonista marrento de anime sendo um babaca com todos ao seu redor menos as menininhas bonitas, acabou se consolidando como uma das facetas mais profundas da história inteira de Garo. O mesmo pode ser dito da atitude cirúrgica e impessoal de Germán, já sem sensibilidade depois de perder tudo e todos que amava, e da filosofia de dever acima do querer de Alfonso San Valiante, o príncipe em fuga que completa o trio de mosqueteiros com cabeça de lobo que são nossos protagonistas.

Eu diria que o grande apelo de Honoo no Kokuin não está nos personagens em si, mas no quão bem eles são posicionados em oposição ao que significa ser um Cavaleiro Makai — que representam o arquétipo do samurai melhor do que Jedis e Witchers jamais poderiam sonhar. O voto do Cavaleiro em Garo não é só uma promessa vaga de defender filhotinhos de cachorro inocentes das garras do Diabo em pessoa, mas sim nunca erguer sua arma contra um ser humano e viver à margem da sociedade, sem reconhecimento ou glória recebidos em troca do trabalho ingrato de desbravar os cantos mais escuros da noite em busca de Horrores. O próprio conceito de Horror faz parte da dinâmica, uma vez que o Horror se manifesta através do egoísmo puro emergente da tristeza aguda, da raiva cega ou mesmo do sentimento incontrolavelmente crescente de injustiça. Todos os Horrores do anime são representados como pessoas comuns em situações nas quais os menos afortunados de nós vivem diariamente, e isso em si mesmo levanta dúvidas quanto à disposição de matar os demônios sem cerimônia quando suas ações são motivadas pelo luto, pelo desespero ou pela vontade de consertar as coisas. O resultado final do anime no que tange à construção dos Cavaleiros Makai é um soldado treinado desde muito jovem para fazer uma coisa, e uma coisa só, pelo resto da vida; um soldado que está proibido de devolver a agressão recebida por homens na mesma moeda, que tem seu orgulho esmagado pelo cotidiano sem riquezas ou conveniência e que atualmente está sendo caçado por todo o mundo.

Isso foi o que me motivou a assistir Garo até o final. As possibilidades para um setting tão bem estabelecido e intrincado eram muitas, e fiquei feliz em ver o anime se aproveitar de cada uma das muitas questões levantadas pela dinâmica Cavaleiros/Horrores. Os bonzinhos sempre derrotam os caras maus no final, sim, mas como expectador eu nunca tive a sensação de que vencer a batalha era a parte mais difícil para os protagonistas; a incerteza entre continuar ou não lutando foi o grande vilão da história, e ele chegou a vencer em várias ocasiões. Tocando no assunto, Honoo no Kokuin não é um anime para se assistir pela história e, em grande parte pela animação.

Eis um dos poucos momentos em que a animação de Garo me surpreendeu.

Os temas e a forma como eles são explorados, a dicotomia entre o idealismo cavalheiresco e a violência grotesca e covarde do mundo real, o tom constante de cansaço e desgaste apesar dos momentos mais leves... Tudo isso é muito bom, mas não é algo que você vai ver em cada episódio; está mais para uma sensação que vai crescendo ao longo do tempo. Eu não recomendaria o anime para um jovem adulto ocupado ou em busca de um passatempo esperto, embora eu mesmo não tenha me arrependido de ficar até o final — final esse que, sendo bem honesto, não foi nada demais.

Garo ganha de mim um prêmio pelo conjunto da obra. É visualmente bem executado, soa bem apesar das mesmas quatro trilhas sonoras sendo tocadas nos mesmos momentos em todo santo episódio, a atuação de voz não faz feio e (o que imagino ser uma característica herdada da série de 2005) tem um dos designs de produção mais distintos que eu já vi. Sério, olha esses monstros:

Dois anos depois de seu lançamento, em 2016, o anime ganhou uma sequel de média-metragem chamada Divine Flame. Não há muito que eu possa dizer sobre essa obra que eu já não tenha dito sobre a que lhe precede: é mais do mesmo, então seu grau de apreciação vai depender do quanto a série lhe agradou. Visualmente falando, a menor incidência de constrições orçamentárias faz de Divine Flame a parte mais consistente da jornada de Léon Luís. É um belo filme de se olhar, e só isso é suficiente para me fazer ignorar a história que nem tenta enganar a respeito de estar indo a algum lugar devido ao fato de estar acontecendo num filme de uma hora e pouca que realisticamente falando não poderia causar grandes mudanças no final estabelecido pelo anime.

Se passando quatro anos depois de Hanoo no Kakuin, o filme nos mostra um vislumbre dos futuros de Léon e Alfonse enquanto conta uma versão de bolso da exploração de temas sobre responsabilidade e satisfação pessoal da série animada. O final é ainda mais qualquer coisa que o do anime, e eu tenho quase certeza que a decisão de retroativamente inserir mais três Cavaleiros Makai ativos no período pós-Inquisição foi um erro no que tange à construção do mundo, mas a duração curta e os visuais de impressionar ajudam até a mais dura das pílulas a descer.

Na minha watchlist de anime ainda tem mais uma série animada se passando no universo Garo, então tenho positivas esperanças quanto ao espaço que a animação de 2014 vai ocupar em meu conceito. Para além de explorar questões que todo fã de Star Wars gostaria de ver respondidas de forma madura antes de a marca ser completamente aniquilada pela gestão atual, Honoo no Kokuin agregou à minha experiência cultural ao começar seus episódios com essa música gostosa pra caramba:

E às vezes, caro leitor, isso é tudo que um anime precisa fazer.

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