Tomás, o camareiro, sentia falta de quando a Família Saturnino não podia pagar pelos serviços de um memorizador. Antes da chegada daquele medonho rapaz que os empregados chamavam de Príncipe, era Tomás o incumbido por cuidar dos interesses de lorde Leonardo e, mesmo que o camareiro não exercitasse sua memória há anos, ele gostava de acreditar que fazia um bom trabalho. Tomás não ficou particularmente surpreso ao descobrir que o memorizador recém-contratado, um homenzinho que mal barba tinha, era capaz de organizar em sua mente todos os compromissos diários dos homens da casa – era pra isso que memorizadores serviam, afinal. Tomás também não se sentiu desrespeitado pela preferência que lorde Leonardo demonstrou pelo novo serviçal, uma vez que as habilidades de um memorizador eram realmente úteis para o cotidiano de um nobre. O que realmente incomodava o camareiro era a correria.
Quando
Tomás era o responsável por agendar reuniões, jantares e atividades de lazer,
as coisas fluíam no ritmo certo: encontros com nobres vizinhos aconteciam com
tempo para que lorde Leonardo despertasse por completo, anulando assim seu
mau-humor matinal, e a criadagem estava sempre pronta para ajudar porque nunca
era forçada a trabalhar com uma frequência desumana. Sempre havia tempo de
sobra e, se o patrão acabasse se atrasando para uma atividade, bom, ninguém se
incomodava tanto.
Depois
que o memorizador chegou, as coisas ficaram muito diferentes. Com horários
inadiáveis, incumbências intermináveis e urgência imprescindível, a Mansão
Saturnino tornou-se um lembrete desagradável da época em que Tomás serviu no
exército. Parecia que estava num quartel, e que de repente o seu patrão se
tornara um soldado tão raso quanto o resto dos criados; havia apenas um
general, e esse era o Príncipe, com o memorizador servindo como um impiedoso
tenente. Lorde Leonardo, coitadinho, não tinha mais tempo para ouvir as
notícias e tomar seu café em paz – o Príncipe o queria do lado de fora assim
que o sol raiasse para se reencontrar com velhos parceiros de negócio e “reconstruir
pontes”, segundo dizia. A criadagem fugia da presença do rapaz loiro como
baratas fogem de uma bota, temerosa de críticas ou novas ordens, e até a mais
jovem das amas sempre parecia estafada e a ponto de desmaiar de cansaço. Tomás
torcia o nariz sempre que via o Príncipe passar uma descompostura a um
cozinheiro que tinha mais filhos do que ele tinha anos, porém gostava demais de
seu trabalho para expressar seu descontentamento.
A
única forma de protesto a que Tomás se permitia eram inofensivas rebeliões
secretas. Quando o Príncipe estava fora e o memorizador trancava-se em seus
aposentos para fazer o que quer que memorizadores fazem quando dispõem de tempo
livre, o camareiro esgueirava-se até lorde Leonardo e o avisava que esse ou
aquele compromisso havia sido cancelado. Era evidente a satisfação nos olhos do
nobre, que tratava de convidar Tomás para uma rodada de bebidas na taverna
favorita de ambos, e o coração piedoso do fiel camareiro sentia-se fazendo do
mundo um lugar menos deprimente.
Naquele
dia, porém, Tomás calculou mal suas mentiras.
A
pobreza tinha enfraquecido muitas das amizades favoritas de lorde Leonardo, e
por isso reencontrar-se com velhos cupinchas se tornara um de seus prazeres
pessoais depois de a Família Saturnino ser agraciada com uma segunda chance
financeira. Sempre que podia, ele os convidava para caçar, velejar, viajar e
jogar cartas; e, desde a chegada do memorizador, tais passatempos eram cada vez
menos frequentes. Tinha sido uma semana particularmente difícil para lorde
Leonardo, principalmente por causa de um disparate de viagem ao sul da
província para renegociar preços de terras, e Tomás sentia falta de um bom jogo
no qual poderia ganhar dinheiro contra nobres que não sabiam jogar tão bem
assim. A oportunidade surgiu quando o memorizador precisou deixar a Mansão para
prestar contas à Guilda de Memorizadores: o camareiro mandou criados avisarem
aos nobres da vizinhança que um jogo seria sediado na propriedade Saturnino no
final de tarde, contratou moças de fora para servirem de decoração e mandou
prepararem a sala de reuniões com guloseimas e almofadas de deitar. Lorde
Leonardo, que não se cabia de animação ao receber a notícia do jogo, esperou
pelos amigos no pátio de fora, onde uma pequena recepção tinha sido organizada.
Foi lá, esperando ao lado de seu amo, que Tomás recebeu no sussurro de um
criado a notícia que o Príncipe ocupava a sala de reuniões.
—
O que foi? — Lorde Leonardo quis saber, unindo as sobrancelhas grisalhas
inquisitivamente. — Vamos, me fale. Luciana fugiu de novo?
Chocado
como estava, Tomás não conseguiu responder de imediato. O criado, assustado com
o tom imperioso da pergunta do lorde, repetiu o sussurro em alto e bom som. A
resposta do nobre foi uma contração ainda mais intensa dos músculos de seu
supercílio. Ele olhou para Tomás com um meio-sorriso confuso:
—
O que aquele rapaz tem? Não foi ele mesmo quem aprovou usar a sala para o jogo?
—
Ele mudou de ideia, senhor — o camareiro balbuciou.
—
Ora essa — o azul-celeste nos olhos de Leonardo nublou-se. — Pois vá
avisá-lo... — Ele se interrompeu, visivelmente lívido. — Quer saber? Eu mesmo
vou.
Sentindo-se
fora do próprio corpo, como que conduzido à própria execução, Tomás acompanhou
o lorde pelos corredores da mansão crente de que estava tendo um pesadelo. À
sua frente, com passos trovejantes e uma voz cada vez mais alta murmurando “Ele
acha que sou um moleque?” e “Imagine o vexame!”, Leonardo projetava-se à frente
com a iminência nauseante do desabar de um prédio colossal.
Houve
um momento durante aquela marcha em que Tomás viu o antigo Leonardo, o campeão
de torneios que costumava ser chamado Leão Saturnino, e o camareiro teve
esperança de que o lorde iria finalmente se impor contra o Príncipe e que a
briga resultante tiraria a atenção de suas transgressões.
A
esperança morreu assim que as portas duplas da sala de reunião se abriram. Do
lado de dentro, espreguiçando-se sobre as almofadas que Tomás havia preparado
para si mesmo, estava o grupo mais amedrontador de pessoas que o camareiro já
tinha visto – e isso considerando que ele cumprira pena por deserção no
Distrito dos Grilhões, onde mulheres engravidavam para vender a carne de seus
bebês.
O
mais próximo às portas era um menino mulato que, apesar do rosto abrutalhado
não trair mais que dezessete anos de idade, tinha um corpo de homem-feito e
trazia nos braços uma coleção variegada de tatuagens de marinheiro para
combinar com o traje de couro de baleia. Ele era cego de um olho, sem dúvida
consequência da cicatriz que cruzava seu rosto de norte a sul, e o branco
leitoso do olho inútil parecia converter em maldade o reflexo da luz que
entrava pelas janelas. Suas mãos enormes brincavam com uma peixeira mais longa
que seu antebraço, e o brilho incomum da lâmina afiada denunciava sua origem
despaginada.
Aquele
não era o único artefato ilegal no cômodo. Com uma das moças decorativas sentada
em seu colo, outro dos convidados do Príncipe acariciava as coxas dela com um
braço mecânico que soltava fumaça quando ele movia os dedos enluvados. O braço
era feito de cobre, a superfície do metal gravada com todo tipo de símbolo
demoníaco, e compartilhava com a peixeira aquele brilho estranho que não se via
em nenhuma superfície terrena. O dono da prótese, um homem quase da mesma idade
que lorde Leonardo, tinha os cabelos pretos presos num rabo de cavalo e um
cavanhaque perfeitamente desenhado à navalha. Vestia-se como um nobre, mas as
cores que usava – preto e cinza – não eram as de nenhuma Família da região.
Outro
de aparência nobre, mesmo que não se vestisse de acordo, era o homem que havia
se alojado mais perto da mesa de guloseimas. Ele não parecia realmente
aparentado com nenhuma das Famílias conhecidas, mas era gordo e isso o
classificava como alguém de posses mesmo sem sangue antigo correndo por suas
veias. Vestia-se com cores demais, e os dedos quase não conseguiam se dobrar de
tantos anéis cravejados. Colares de prata, ouro e pérolas dependuravam-se das
muitas camadas de gordura em seu pescoço, e a careca lisa pronunciava-se bulbosa
no topo do rosto infantilmente arredondado. Fora as sobrancelhas, nenhum fio de
cabelo era visível nele. Debaixo delas, olhos porcinos examinavam os
recém-chegados com interesse faminto.
A
única moça no grupo chamava a atenção não só por isso, mas também pelo vibrante
cabelo vermelho. Ela o usava trançado e enrolado num coque, o que contribuía
para a imagem masculina criada pelas roupas que usava, mas o rosto desfazia
qualquer impressão que não fosse a de estar olhando para uma bela mulher. Mesmo
as antigas cicatrizes no nariz e na têmpora direita eram incapazes de desarmonizar
a composição de nariz afilado, lábios carnudos e olhos queimando em fogo verde.
Eram os olhos, mais do que qualquer outra coisa, que a faziam pertencer àquele
grupo. O brilho deles traía prontidão para participar em atos terríveis.
No
Distrito dos Grilhões, Tomás se acostumara a julgar o nível de ameaça de seus
vizinhos pelo brilho no olhar deles. Foi assim que ele conseguiu sobreviver à
experiência, e tal habilidade provara-se para lá de útil fora do distrito-prisão.
Quando ingressou como criado na Família Saturnino, começou a perceber um tipo
diferente de ameaça – a que habitava os olhos de nobres. Ela não era imediata
ou física, mas sim lenta e humilhante; mesmo que um nobre não fosse capaz de
lhe esfaquear entre as costelas por olhar feio para ele, você não iria olhar
feio para ele de qualquer forma. Os anos na Mansão Saturnino desacostumaram
Tomás a reconhecer nos olhos de alguém aquele tipo mais alarmante de ameaça, o
tipo que faz a pessoa querer distância porque não existem convenções sociais
para impedir que o pior aconteça. O impacto de reconhecer aquele tipo de olhar
num grupo de pessoas aparentemente sociáveis, sem nada da insanidade animalesca
dos moradores do Distrito Grilhões, quase motivou Tomás a fechar as portas que
lorde Leonardo tinha acabado de abrir e sair correndo até o outro lado da
mansão.
—
Papai — o Príncipe disse, e foi como se ele estivesse constatando a procedência
de algo que ficara preso na sola de sua bota. A naturalidade com que se portava
na companhia daquelas pessoas renovou o medo que o camareiro sentia dele. — Voltou cedo. Como vai lady Grená?
—
Lady Grená...? — Lorde Leonardo não era capaz de perceber que estava em perigo,
como poderia?, mas uma parte muito rudimentar de sua mente parecia estar
dizendo-o para tomar cuidado. Ele precisou de um momento para absorver a visão
daquelas pessoas em sua sala de reuniões. — Ficou adiado para amanhã, não
lembra? Algo sobre ela estar indisposta. Ninguém lhe avisou?
Os
olhos do Príncipe dardejaram para os de Tomás, e uma compreensão silenciosa
firmou-se em silêncio. O camareiro sentiu um calafrio muito pior que o que lhe
assaltara quando as portas da sala de reunião foram abertas, um calafrio de
prenúncio de morte, e teve de se controlar para não se entregar aos tremores
quando a sugestão de um sorriso sombreou as feições do rapaz loiro.
—
Acho que não — o Príncipe concedeu, afetando pesar. Olhou ao redor, para seus
associados. — Teremos de continuar isso outra hora, senhores. — E, com um aceno
de cabeça para a moça ruiva: — Senhora.
—
Não — lorde Leonardo estendeu a mão, e havia um quê de urgência no gesto. —
Não, não. Não precisa. Foi um erro de comunicação. O tipo de coisa que acontece
quando não temos um memorizador na casa. — E ele riu sozinho, o eco de sua
risada sufocado pelo silêncio dos demais presentes. — Por favor, fiquem. Amigos
do meu filho são meus amigos. Tomás, acha que podemos mudar a programação de
hoje...?
A
última parte escapou pela brecha entre as portas enquanto o nobre tornava a
fechá-las. Uma vez que a passagem selou-se por completo, o clique suave do trinco flutuando pelo silêncio em que ficara a sala
de reuniões, Ravena Lupin virou-se para Júlio e, numa imitação quase perfeita
da voz dele, disse:
—
“Papai”.
Gargalhadas
irromperam pelo cômodo, sendo a de Afonso Morande a mais espalhafatosa devido
ao fato de ele ter se engasgado com uma das guloseimas que estava mastigando
quando começou a rir. Forçado tirar de seu colo a garota com quem estava
flertando durante toda a reunião, Edmundo Nebrim correu para acudir o colega
engasgado. A cena resultante foi tão engraçada que até Jorge Salino, do canto
distante onde se acomodara, tirou os olhos de sua faca de estimação para
observar.
Quando
finalmente recuperou-se do engasgo, Afonso não estava mais achando graça de
nada. O braço mecânico de Edmundo queimara suas as costas quando este o
comprimiu para fazer sair a obstrução em sua garganta, e as moças ao seu redor
faziam muita força para não caírem no riso também. Júlio sabia que o orgulho de
Afonso era perigoso, por isso tratou de se recompor e, a despeito das lágrimas
de riso visíveis em seus olhos, ordenou com sua melhor voz imperiosa que se
fizesse ordem.
—
Bom, senhora e senhores, esse foi meu pai — ele olhou de esguelha para Ravena,
que repetiu “papai” num sussurro para que só o Príncipe ouvisse, e mordeu o
interior da bochecha para não cair no riso novamente. — Eu esperava que
pudessem conhecê-lo numa circunstância melhor.
—
Ah, claro — Edmundo tornou a sentar-se, batendo com a mão mecânica enluvada no
colo para que a moça voltasse a se sentar nele. — Quando ia ser isso? Reunião
do clube?
—
Nunca seria o ideal — Afonso interveio, a voz áspera e chorosa ao mesmo tempo.
Ele fingiu não se sentir embaraçado pela cena que causara concentrando-se em
ajustar os anéis nos dedos. — Não passei vinte anos escondendo minha identidade
para ter um nobrezinho qualquer vendo meu rosto.
—
Ele não sabe quem você é — Ravena argumentou.
—
Estamos cercados de prostitutas — Edmundo salientou, cutucando o nariz da
mulher em seu colo para arrancar dela um risinho em falsete. — Está meio tarde
para se preocupar com privacidade.
—
Mas com elas é muito mais fácil de lidar — Afonso retrucou, as mãos
inconscientemente desembrulhando um bombom e levando-o à boca. — E nenhuma
delas pode falar o que viu ou ouviu aqui para alguém que realmente possa fazer
alguma coisa contra mim.
Houve
um momento curto de silêncio quando todas as moças contratadas para estarem ali
registraram o que Afonso queria dizer com “fácil de lidar”. Algumas delas
trocaram olhares nervosos.
—
Meu pai — Júlio irrompeu, frustrado com um desvio tão longo na conversa — é
confiável. Ele sabe de onde vem o dinheiro que está reconstruindo literal e
figurativamente a casa dele.
—
Então ele já sabe que esse dinheiro está prestes a acabar? — Afonso retorquiu.
Havia
uma satisfação sombria em seu rosto. Ele estava disposto a descontar em
qualquer um pela vergonha que tinha passado. Júlio o encarou longamente em
resposta.
—
Desculpe — o careca murmurou, baixando os olhos e abandonando a postura
combativa.
—
Desculpado — o Príncipe concedeu, magnânimo. Estava grato por ter encontrado a
oportunidade de voltar a discutir as questões pendentes. — É natural que a
situação financeira de nossa associação inspire desespero, mas não vamos nos
entregar. O que estava dizendo, Ravena, sobre a situação com os tartarianos?
—
Estava dizendo que vai mal — ela pescou do coque ruivo um pedaço denteado de
metal despaginado e o depositou no tampo da mesa baixa que ficava no centro da
sala de reuniões. — Encontrei isso na nuca do meu intermediário no Distrito do
Valor. O desgraçado estava tentando me entregar para eles, pelo que entendi,
mas cometeu algum erro no processo. Não estou falando de um revendedor
chinfrim, e sim de um intermediário veterano, e eles simplesmente o apagaram
para passar uma mensagem.
—
Quem faz esse tipo de coisa? — Afonso admirou-se, revelando os dentes sujos de
chocolate enquanto falava. — Digo, isso é suicídio profissional.
—
Tartarianos não ligam — Edmundo comentou, sombrio. Ele virou-se para Júlio: —
Eu...
—
É, você avisou — o Saturnino adotado não estava com vontade de ouvir o mais
velho dentre eles ralhando. — Descobriu alguma coisa, Afonso?
—
Tartária está mais distante do meu alcance do que pensei — o careca explicou. —
Minha rede de espiões está se reconfigurando para firmar dois, talvez três
contatos em território tartariano mas, por enquanto, eu não tenho nada além do
que a senhora Lupin já nos disse: eles estão em sete, dois deles são assassinos
com relativa fama do lado de cá do mundo, e radicaram-se no Distrito de Baixo.
—
Algo sobre contratar mercenários?
—
A Guilda tem autenticado alguns contratos caros ultimamente, e todos eles para
um cliente de fachada — Afonso expressou incerteza com as feições arredondadas.
— Se forem mesmo os nossos amigos contratando, eles têm um pequeno exército.
Júlio
deixou escapar um suspiro desanimado. Virou-se para Edmundo:
—
Podemos lidar com um pequeno exército?
—
Sim, mas não por muito tempo — o braço mecânico chiou, soltando uma coluna de
fumaça. — Os nossos mercenários estão debandando, e os que ainda estão conosco
não vão lutar com tanto afinco se passarem mais tempo sem receber salário.
—
E seus homens, como estão?
—
Prontos — Edmundo respondeu, simplesmente. — A Família Nebrim jurou lealdade ao
Príncipe, e será seu braço armado até esse juramento ser cumprido.
Confiar
não era uma reação natural para Júlio, mas a firmeza nas palavras do cavaleiro
lhe traziam a calma de que seu raciocínio tanto precisava para não acreditar
que tudo estava perdido.
—
Jorge — ele chamou, esperançoso. — Quando pode voltar a navegar?
O
capitão do Peixe-Espada ergueu os olhos de sua faca, como que completamente
alheio à conversa que se desenrolara durante todo esse tempo, e com sua voz
ressecada disse:
—
Não sei.
A
onda de decepção que se espalhou a partir dessa pequena frase foi tão grande
que poderia ter afogado todos os presentes, mas ninguém disse nada. Quem
ousaria? O tempo havia mostrado que as superstições do capitão Jorge estavam sempre
corretas, e que, quando ele não julgava seguro navegar, o oceano devorava por
inteiro o navio que partia em seu lugar. Com promessas de violência descomunal
feitas a todos os contrabandistas que faziam negócios com o Príncipe, os
tartarianos tinham deixado uma única rota comercial viável: a com os iberos. Não
bastasse ser uma rota particularmente longa, o que atenuava o lucro potencial,
ela também era a que Jorge menos gostava de navegar. “Águas despaginadas”, ele
dizia. Fazia meio ano que o capitão se recusava a cruzar o mar entre o império
e Ibéria, atestando que os presságios eram ruins, e depois de perder quase toda
a sua frota insistindo o Príncipe se resignou a esperar pelo aval de Jorge.
—
Alguém aqui quer voltar atrás? — Júlio se ouviu perguntando.
Olhares
confusos foram trocados pelos demais, e ninguém respondeu.
—
Não é tarde pra isso — ele explicou, detestando o quanto de sua juventude
ficava evidente quando ele ficava nervoso demais para disfarçar a própria voz.
— Podemos matar os Saturnino e vender a mansão, os cavalos e os criados. Pedi
ao memorizador, Gaspar, para fazer as contas. Ele me disse que podemos
conseguir pelo menos o suficiente para renegociar a dívida. Eles não sabem que
você faz parte do grupo, Afonso, então tudo que você precisaria fazer é fingir
que não nos conhece.
O
silêncio confuso deu lugar a um silêncio diferente – aturdido.
—
Foi um bom plano — Júlio disse, completamente perdido em seus próprios
arrependimentos. — Eu não teria chegado tão longe se não fosse por vocês, pela
confiança de vocês, então...
—
Pelo amor — Ravena revirou os olhos. — Eu achei que ele estivesse falando
sério.
Edmundo
e Afonso riram alto, e de seu canto Jorge balançou a cabeça numa negativa
desaprovadora. Júlio tentou manter o semblante sério ao encarar Ravena, mas o
sorriso dela o desarmou.
—
Eu estou falando sério — ele
insistiu.
—
O que você está querendo dizer — a ruiva o cutucou no ombro — é que não quer
ninguém reclamando quando a coisa piorar. Tudo bem; ninguém aqui vai.
Júlio
olhou ao redor, procurando sinais de discordância nos rostos de seus
associados, mas só o que encontrou foi o oposto. Até Jorge lhe lançou um aceno
encorajador. Cercado por uma ladra, um cavaleiro em desgraça, um espião e um
contrabandista, com perspectivas sombrias no horizonte e incapaz de recorrer ao
cinismo como válvula de escape, o Príncipe se viu mais capaz de superar seus
inimigos do que nunca.
A
reunião terminou bem mais tarde do que deveria. Depois de calcularem as perdas
do último mês, os associados decidiram quais estratégias tomar no mês seguinte
e então se entregaram a uma noite de bebedeira.
Estava
tão tarde quando Júlio despediu-se de seus colegas na entrada secreta da mansão
que ele não esperava encontrar um rapaz magrelo de cabelos encaracolados do
lado de fora de seus aposentos para um resumo dos acontecimentos do dia – mas foi
exatamente quem ele encontrou. O memorizador, ao que parecia pelas botas sujas
de poeira e o traje formal completo que estava usando, nem tinha se trocado
antes de prontificar-se para o dever. Ele sorriu ao ver o patrão
aproximando-se, ignorando as horas que tivera de esperar, e tratou de contar a
Júlio como fora a audiência com os mestres de sua guilda.
O
Príncipe demonstrou satisfação quando Gaspar lhe falou da surpresa no rosto
deles; ninguém esperava que o jovem memorizador servisse para alguma coisa
depois de anos de rejeição. Júlio havia deliberadamente exagerado nos elogios
de seu relatório de cliente para que não restasse dúvida de que Gaspar era o
memorizador escolhido para cuidar de seus interesses.
Era
engraçada a definição que a Guilda dos Memorizadores tinha de “defeito”.
Enquanto outras guildas abandonavam aprendizes devido a imperfeições físicas
como membros avariados, a que criava e regulamentava o trabalho de
memorizadores considerava defeituoso um aprendiz que não conseguia acessar suas
muitas lembranças sem precisar recitá-las em voz alta. Seguindo esses
parâmetros, um rapaz perfeitamente saudável de vinte e poucos anos como Gaspar
era um completo inútil. Melhor para o Príncipe: defeituoso, sim, mas tão grato
por ter sido escolhido que estava disposto a guardar os segredos mais
hediondos.
Quando
a conversa deles terminou e memorizador fez que ia voltar a seus aposentos,
Júlio lembrou-se do que Tomás tinha feito e pediu para que Gaspar esperasse.
—
Me faça uma conta — pediu.
Com
o mesmo sorriso expectante no rosto com que recebera o Príncipe naquela noite, Gaspar
tornou a se sentar na poltrona e esperou.
—
Quantas pessoas você acha que são capazes de mentir? No mundo, digo.
O
olhos castanho-claros do memorizador saíram de foco.
—
No ano passado — ele recitou, a voz tão suave quanto sua respiração —, cento e
vinte e duas pessoas foram presas pela ofensa de proferir inverdades; cento e
vinte foram condenadas. Foi uma queda de dezesseis por cento em relação ao ano
passado, configurando um declínio cada vez maior de incidentes desde a
instituição da pena de morte pelo crime em questão. Levando em consideração a
população atual do império, e a margem de erro representada por pessoas capazes
de mentir sem serem pegas, como é o caso do senhor... — Gaspar pausou
longamente. — A cada milhão de pessoas, setenta são capazes de mentir.
—
E quão sortuda uma pessoa teria que ser para encontrar um desses mentirosos que
saem impunes? — E, ao ver os olhos de Gaspar saírem de foco novamente, Júlio
adicionou: — Não precisa fazer uma conta.
—
Hã... Muito sortuda, acho.
—
É — Júlio concordou. Sorriu para si mesmo, esquecendo que estava acompanhado ao
dedicar um momento para observar a dança das chamas na lareira de seu quarto. —
Quero que me faça um favor.
—
É só falar.
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